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Até o Último Homem

Até o Último Homem

Matheus Fiore - 26 de janeiro de 2017

Dez anos após Apocalypto, Mel Gibson volta à direção com Até o Último Homem, drama de guerra baseado na história de Desmond Doss, enfermeiro militar americano que foi responsável pelo resgate de 75 soldados durante a Batalha de Okinawa, conflito entre as forças armadas americana e japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Como os Estados Unidos amam enaltecer seus heróis de guerra e construir narrativas nas quais eles são heróis imaculados lutando pelo bem em nome de Deus, foi a oportunidade perfeita para Gibson voltar aos holofotes e, de quebra, alavancar a carreira de Andrew Garfield, indicado ao Oscar pelo filme.

O filme acompanha o protagonista desde antes do conflito, construindo ainda na sua infância um forte altruísmo e senso de coletivismo em seu cerne. Criado em família religiosa com um pai que serviu durante a Primeira Grande Guerra, Desmond sempre viu seu futuro na igreja, mas ao ter os primeiros contatos com o serviço médico militar, despertou uma paixão por ajudar seu país. Quando se une ao exército, porém, Desmond entra em conflito com seus superiores por, devido as suas crenças religiosas, negar-se a pegar em armas de fogo.

Apesar do frágil e óbvio roteiro, que recorre às mais previsíveis muletas estruturais para desenvolver Desmond Doss, como retratar o personagem correndo para resgatar um homem preso embaixo de um carro (faltando apenas a capa vermelha com um S estampado), a direção de Gibson consegue dar peso à trama com auxílio da fantástica atuação de Hugo Weaving como Tom Doss (o único aqui que merecia alguma indicação ao Oscar). Toss, pai de Desmond e de seu irmão, sempre deixa clara sua posição anti-guerra e, por meio de olhares e expressões tristes, demonstra enorme trauma de sua passagem por ela.

Mesmo seguindo a clássica estrutura de três atos, o filme é dividido em duas partes: a crescente paixão de Doss pelo trabalho dos médicos e enfermeiros que o leva ao alistamento e, posteriormente, sua participação na guerra. Na primeira, vemos um drama com muita dignidade cujas atuações e a direção de Gibson dão um acertado clima carregado de medo aos personagens, como no uso planos que enaltecem o vazio deixado pelas perdas de cada um deles na conversa entre Desmond e seu pai.

A atuação de Andrew Garfield, mesmo muito elogiada, não foge do comum. Assim como no recente O Nascimento de Uma Nação, o roteiro de Até o Último Homem parece mais interessado na construção de um mártir do que na parte histórica dos eventos, e Andrew acompanha esta escolha adotando sempre um olhar inocente, humilde, e uma postura irritantemente passiva, fazendo de toda dificuldade um degrau para sua cruz. Sua dedicação para emular a voz do verdadeiro Desmond Doss, porém, é elogiável.

O problema do filme começa mesmo quando Doss chega no exército. Repetindo diversos clichês de filmes de guerra, onde o sargento “malvado” tortura seus subordinados, a obra consegue elevar isto à um patamar de vergonha alheia ao inexplicavelmente escalar Vince Vaughn como Sargento Howell. A atuação de Vaughn torna o personagem extremamente canastrão, sempre parecendo estar se divertindo enquanto corpos são explodidos ao redor, não sabendo imprimir nenhuma dramaticidade (que é muito necessária) às suas cenas. Igualmente inexplicável é a escalação de  Sam Worthington (Avatar, Fúria de Titãs) como Capitão Glover, que além de não ter muitas cenas para desenvolver algum conflito, novamente atua de forma extremamente artificial e inexpressiva.

Já durante a Batalha de Okinawa, o roteiro tenta humanizar o militarismo americano e enaltecer a humanidade de Doss, enquanto a direção parece se deliciar com os planos em slow motion de corpos sendo queimados, tripas voando e pessoas explodindo. Esse contraste entre script e imagem faz o filme arranhar um tom humorístico involuntário que é coroado com chave de ouro quando, em um dos momentos mais bregas do cinema recente, a maca que carrega o ferido Desmond Doss é elevada ao céu, simbolizando a santificação do enfermeiro. A escolha de vender o exército americano como um time de anjos contra os demônios japoneses é maniqueísta.

A obra traz algumas sequências de guerra interessantes graças ao talento de Mel Gibson, como a que abre o filme, que utilizando uma câmera subjetiva, insere o espectador no meio do combate e torna todas as explosões e acontecimentos extremamente grandiosos pelo ângulo usado. Mesmo que haja um enorme contraste de ideias, o combate em Okinawa também tem um visual caprichosamente realista. Diferente do que Hollywood tem feito em filmes de guerra recentes que tentam poetizar seus confrontos, Até o Último Homem apresenta uma estética mais calcada na realidade e que, graças à boa construção da mise-en-scene de Gibson, torna a serra de Okinawa um atraente campo de batalha, aproveitando diferentes ângulos para deixar o espectador confortável e consciente diante do necessário excesso de cortes nas cenas.

A trilha e a edição de som do longa são eficientes por, aliadas à montagem, criarem um crescente tom de urgência que impede que as cenas de ação tornem-se monótonas. Mesmo quando não há alguma ação, apenas diálogos, o som mantém a guerra presente em cena pelas explosões ao fundo ou pela épica trilha sonora, que ajuda a dar a roupagem de santidade ao protagonista. Tão importante quanto é a cadência dos momentos de combate com os diálogos que desenvolvem a trama, evitando que o filme torne-se um gigante e insuportável clímax.

Forçando a barra para comover seu espectador com close ups em expressões tristes e tripas, Até o Último Homem é um interessante cruzamento entre uma boa história de guerra, um roteiro que se preocupa com a humanidade de seus personagens e uma direção talentosa que quer apenas retratar violência e martirização. É uma obra com grandes contradições narrativas, mas que traz algum valor de entretenimento. Ainda que Gibson seja um cineasta com boas ideias, seria interessante ver tal script nas mãos de um diretor mais engajado com a história e menos com a carnificina. Pelo menos funciona para trazer o infame australiano de volta para Hollywood.

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