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Lucky

Lucky

Gustavo Pereira - 6 de dezembro de 2017

Lembranças são como árvores solitárias no meio do deserto. Vislumbres de coerência na aridez do passado. Lucky é um embate entre os caminhos da vida, tanto o natural quanto o forçado. Do cágado chamado “Presidente Roosevelt”, xará do mais longevo chefe de Estado norte-americano, e de Lucky (Harry Dean Stanton), um nonagenário encarando a proximidade inevitável da morte. O fim da linha torna a viagem mais ou menos agradável?

Quando se está prestes a morrer por velhice, o próprio tempo se torna relativo. Numa metalinguagem elegante, Lucky não inicia uma história junto com o filme ou encerra uma com o seu final. John Carroll Lynch (nenhum parentesco com David Lynch. O diretor de Twin Peaks, contudo, está no elenco) faz um recorte, estando mais interessado em despertar questões do que em dar respostas definitivas. E uma das principais questões levantadas é precisamente o sentido da vida. Manter uma rotina ordenada (notamos a passagem de tempo em Lucky não pelo decorrer da história, mas pela repetição de planos, algo que curiosamente remete ao clássico Feitiço do Tempo), praticar exercícios, frequentar os mesmo lugares – estar no controle é relevante?

Lucky David Lynch Harry Dean Stanton

David Lynch não é competente apenas atrás das câmeras. O luto de Howard pela fuga de Presidente Roosevelt convence e comove. Também guarda uma das mensagens centrais de Lucky: não estamos no controle de nada. Nunca.

Em cima de cada hábito de Lucky (o apelido vem do sentido em Inglês do termo, “sortudo”), o espectador é convidado a refletir sobre conceitos amplos, como realismo e solidão. A definição dada por Lucky, “aceitar as coisas como são e lidar adequadamente” marca o caminho dos personagens. Mas é no movimento artístico do final do século XIX que encontramos a grande motivação do diretor John Carroll Lynch: O realismo é uma resposta ao romantismo, que se diferencia ao repudiar a idealização dos sentimentos e abraçar a verdade dos fatos. O realismo retrata os protagonistas de uma forma similar, não-heroica e objetiva. E é sem heroísmos que Lucky enfrenta a verdade de, mesmo saudável, sua vida estar acabando. Esta condição rara, de quem não tem uma doença para culpar, ou a sequela de um acidente do passado para tornar a existência mais miserável, é realmente um golpe de “sorte”?

O ateísmo do protagonista, presente em todas as sinopses do filme, mais se faz presente pela ausência de religiosismos do que por uma afirmação categórica. Outra forma de retirar qualquer aura heroica, estoica ou extremamente dramática da equação. Lucky comove por não tentar comover, por tratar o término do ciclo da vida com a naturalidade que ele merece. O homem solitário (que, diferente do homem sozinho, opta pela solidão) que olha para o abismo e reage a ele da melhor forma possível.

Lucky Harry Dean Stanton

Belíssimo contraste entre as cores frias do céu e quentes da terra, todas “lavadas”, com o aspecto de gastas pelo tempo, em harmonia com o figurino de Lucky.

Mais do que pelas decisões técnicas de Lynch, como o uso de tomadas longas, que permitem ao espectador degustar calmamente a composição de cada quadro, ou o uso de uma paleta árida e dessaturada, com o figurino de Lucky se misturando ao ambiente, o filme envolve a audiência pelas atuações honestas de seu elenco. Conversando com Fred (Tom Skerritt), Lucky fala sobre suas experiências na Segunda Guerra Mundial, sendo o próprio Stanton um tenente da Marinha reformado. Ambos Atuaram juntos em Alien: O Oitavo Passageiro; Stanton também foi dirigido por David Lynch em Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer; no quase esquecido Rango, trabalhara com Beth Grant, que aqui dá vida a Elaine, dona do bar onde Lucky bebe sua “bloody Maria” diária.

Lucky Harry Dean Stanton

A quebra na paleta se dá no uso da cor vermelha, sempre associada ao desconhecido. O vermelho “rouba” Lucky de sua rotina controlada.

Lucky acaba sendo uma grande celebração à carreira de Stanton, e essa honestidade na retrospectiva de uma vida intensamente aproveitada se reflete no produto final. Um filme que relaciona a iminência da morte à fuga de um cágado. E o faz de forma tão sutil que se torna óbvia. Um dos melhores deste bom 2017 para a Sétima Arte.

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