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mãe!

mãe!

Matheus Fiore - 19 de setembro de 2017

Na segunda metade da década passada, o diretor Darren Aronofsky, com A Fonte da Vida, passou a exibir fascínio pela mitologia cristã e sua moralidade. A Bíblia, porém, só se tornou tema central de uma obra do cineasta em 2014, com o polêmico e épico Noé, filme no qual Aronofsky mostra a construção da Arca, o Dilúvio e, em uma de suas melhores sacadas, retrata o Deus (no filme chamado de Criador) como o grande vilão da trama. Ali, o cineasta demonstrou, pela primeira vez, interesse em mostrar como acredita que o Deus seja uma figura não benevolente, mas cruel, egoísta e moralista.

Chegamos, então, a 2017, e Darren Aronofsky lança mãe!, seu mais polêmico e polarizante filme, que dividiu vaias e aplausos quando exibido no Festival de Veneza. Protagonizado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem (que vivem personagens sem nome mas de óbvias representações), a obra acompanha um casal que começa a receber visitantes inconvenientes em sua nova casa. Explorando os limites entre o uso de analogias e a construção narrativa, Aronofsky utiliza a simplíssima premissa para, de forma análoga, dar vida a diversas passagens bíblicas, da relação entre Adão, Eva e seus filhos, Abel e Caim, à criação e ao apocalipse. Como resultado, a obra torna-se um estudo bíblico diferente, utilizando os dilemas de um casal para retratar Deus como uma figura egocêntrica.

Criando uma atmosfera opressora para a personagem de Lawrence, Aronofsky e o diretor de fotografia, Matthew Libatique, fazem uso de inúmeros planos-sequência que acompanham o deslocamento da moça pela casa – quase sempre com a câmera posicionada atrás da atriz, o que proporciona a inserção do espectador em sua perspectiva. Na construção de um cenário que oprime a protagonista, é essencial o uso de close ups com camera na mão, a fim de tornar a situação da personagem confusa e sufocante. Já Bardem, artista e seu esposo, é quase sempre retratado de forma distante. É curioso notar, por exemplo, como em cenas de diálogos entre o casal, Lawrence é filmada em planos fechados em seu rosto, enquanto Bardem é capturado em planos mais abertos, mostrando como ele a controla e sufoca.

Pela ausência do corte nessas cenas, as passagens de tempo ganham escalas surrealistas – eventos que demorariam meses ou até anos ocorrem em segundos -, evidenciando que a narrativa corre de maneira análoga, em um tempo diferente do humano, dando à obra um tom onírico que contrasta com a fotografia e as atuações naturalistas. Conforme acompanhamos tais saltos, o longa também embarca cada vez mais em seu estudo bíblico, o que desprende o filme da história do casal e, pouco a pouco, o imerge nos simbolismos. A inserção de novos personagens, pouco a pouco, evidencia ainda mais o anseio de Aronofsky por refazer histórias da Bíblia, o que deixa de ser uma analogia e torna-se uma narrativa de metáforas.

Diante de tantos acontecimentos extraordinários, a única constante é o egocentrismo de Bardem e o esforço de Lawrence para preservar seu lar e até os visitantes – que permite que os personagens de Ed Harris e Michelle Pfeiffer fiquem na casa mesmo diante da bagunça que eles fizeram. Se escolhermos entender a personagem de Jennifer Lawrence como a protetora da casa, é belo seu esforço para evitar a autodestruição dos visitantes, escondendo os itens que simbolizam a destruição deles tanto moralmente (a sexualidade representada pela calcinha) quanto fisicamente (o isqueiro que impede Ed Harris de fumar). O diretor ainda separa bem a diferente relação de Bardem e Lawrence com a casa ao mostrar que, enquanto o primeiro é negligente com o lugar e permissivo com as visitas, a segunda sente as dores da morada, chegando a vê-la sangrar e seu “coração” apodrecer.

O mais interessante acaba sendo a visão de que o Deus é, assim como em Noé, um grande vilão. Uma figura que tem como objetivo apenas ser adorada, perdoando e ignorando todas as falhas e crimes de suas criações sem demonstrar qualquer desejo por corrigir ou punir, desde que a ele sejam devotos – ou façam oferendas em sua homenagem, como ocorre em certo ponto do filme. A narrativa estabelece tal ideia ao trazer o personagem de um poeta em crise artística, que deixa de lado seu trabalho em prol da bajulação dos fãs, mesmo que isso custe seu relacionamento com sua esposa e a integridade de seu lar.

A obra, por quase toda sua metragem, mantém uma abordagem distante dos acontecimentos – escolha acertada, já que, assumimos o ponto de vista de Lawrence. Assim como a protagonista, o público vê quase tudo ocorrer com certa distância, uma escolha inteligente de Aronofsky para mostrar o individualismo e a negligência presentes nas decisões tomadas por Bardem, que sempre tem a palavra final sem consultar sua esposa. Tal distanciamento ainda é um eficiente recurso para que possamos contemplar a feira de analogias proporcionada por mãe!, trazendo uma enxurrada de referências à Bíblia que, infelizmente, em certo momento, deixam de acrescentar à narrativa e passam a ser apenas adereços estéticos.

A ousadia da construção narrativa sai e entra um Dilúvio de exposição. Com diálogos e referências que visam a impedir que o espectador mais desatento saia confuso, mãe! adota falas e símbolos visuais que dificultam interpretações alternativas ao tema central da obra. É curioso notar que, ao mostrar a violência e o pecado não como elementos inerentes ao ser humano, mas oriundos da negligência do Criador diante de erros de sua criação (como a destruição do cristal que representa o fruto proibido), Aronofsky sugere ainda que as falhas humanas sejam culpa de Deus, acirrando sua crítica ao livro sagrado e ao seu Deus – todo o caos existente no ato final é perdoado quando oferendas dos fãs chegam ao Poeta, por exemplo.

Ao dissolver as diferenças entre analogia e narrativa, Darren Aronofsky faz de seu filme um carrossel de releituras e interpretações mitológicas que, ao final, expõem sua crítica visão da Bíblia. O problema é justamente o excesso de alegorias soltas, que torna a trama dispersa, embarcando em um surrealismo narrativo que nunca é totalmente abraçado, fazendo com que a obra soe covarde por, em certo ponto, ser surreal, mas manter alguns elementos da narrativa com os “pés no chão”.  Ao final da projeção, Aronofsky mostra-se mais pretensioso do que audacioso, o que não impede que mãe! funcione como uma análise da mitologia bíblica sob uma ótica anti-cristã. Sua crítica acaba ficando quase sempre no segundo plano, sufocada pelas metáforas e representações históricas que preenchem o ato final.

mãe! não atinge a catarse almejada justamente por não saber amarrar tantas alegorias à narrativa a fim de criar um clímax que impacte – algo que Aronofsky fez com excelência em Réquiem para um Sonho. Falta não só respiro entre os grandes eventos da trama, que se sucedem ininterruptamente; falta também uma mudança na cadência de cortes por parte da montagem, uma união dos elementos fílmicos a fim de criar alguma urgência no ato final. mãe! mantém a mesma passada do primeiro ao último plano, o que compromete seu fôlego e um possível choque no público.

Se há algo que impacta em mãe!, sem dúvida é as atuações de Jennifer Lawrence e Michelle Pfeiffer. Enquanto Ed Harris e Javier Bardem não encontram espaço suficiente para se destacarem (o que passa longe de ser um defeito do filme, mas algo justificado na proposta narrativa da obra, que melhor explora as personagens femininas), Lawrence vai da inocência, quando mantém uma composição física mais controlada e tímida, retratando a posição de espectadora inocente que assume por boa parte do filme, a desespero e ódio, desta vez com uma movimentação mais brusca e construção vocal mais descontrolada, sendo natural e coerente com a explosão existente no ato final da obra. Já Pfeiffer aposta em uma postura mais petulante e provocativa, mostrando-se essencial para a criação do mistério e praticamente antagônica à figura da protagonista.

Ao acender das luzes no fim da projeção, é forte a sensação de que o longa tentou inserir mais referências bíblicas do que sua metragem de 120 minutos permite. mãe! é autoral, visceral, alegórico e crítico, mas não explora seu máximo potencial porque, em vez de focar na narrativa e utilizar as alegorias para enriquecê-la, constrói uma narrativa baseada em analogias, o que faz com que a obra funcione para fortalecer a ideia do cineasta, e não o contrário. Aronofsky esquece-se que os elementos devem existir em função da narrativa, e não o filme existir para confirmar seus ideais. Indeciso entre tratar toda a temática de forma análoga ou escalar do real para o surreal, Aronofsky faz os dois, fecha as portas para interpretações alternativas e entrega um filme que, com seus pequenos deslizes, ainda é direto e honesto.

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