Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

O Mínimo para Viver

O Mínimo para Viver

Gustavo Pereira - 15 de julho de 2017

O melhor insight de O Mínimo para Viver é representar um tema tão controverso quanto rotineiro na sociedade pós-moderna – a saber: transtornos alimentares – pela ótica dos próprios doentes. Da mesma forma que um dependente químico não se reconhece doente, pessoas com neuroses referentes ao peso também se sentem “no controle” da situação, conceito trabalhado mais de uma vez no filme. Fica a cargo do senso crítico do espectador perceber que não, Ellen (Lily Collins, em uma atuação inspirada) não está no controle. E essa falsa noção de estar é a responsável por tornar sua anorexia tão perigosa.

O filme teve consultoria de pacientes reais na confecção do roteiro, algo notado em pequenas sutilezas recorrentes: Ellen tenta fechar a mão em torno de seu bíceps ao longo da história (a montagem não nos deixa notar o uso de dublês de corpo quando o filme precisa mostrar os avanços da doença); sua colega de quarto Anna (Kathryn Prescott, com surpreendentes 26 anos) corre escondida para queimar as calorias adquiridas nas refeições; Pearl (Maya Eshet) surta com as calorias de uma bolsa de soro etc. A clínica de reabilitação cria um mundo paralelo, onde estes absurdos são vistos com normalidade, até mesmo desinteresse. Em vez de banalizarmos os distúrbios, olhamos com mais compaixão para os pacientes. Sentimos por eles e torcemos para que se recuperem.

Ellen vai parar nesta clínica – chamada, sagazmente, de “Limiar” – após mais uma internação infrutífera, quando sua madrasta a leva para o doutor William Beckham (Keanu Reeves), que aceita tratá-la. Muito criticado por atuar de forma semelhante em todos os seus papéis, Reeves cai como uma luva aqui: seu personagem, uma espécie de Dr. House com filtro, trata seus internos de forma pouco ortodoxa: proíbe que falem com ele sobre comida (“não ajuda em nada e vocês só mentem”) e que sintam pena de si próprios (“só atendo quem tem interesse de continuar vivo”). Seu ar levemente blasé funciona para lhe conferir a autoridade de um profissional que sabe com o que está lidando.

Nas tramas paralelas apresentadas no decorrer de O Mínimo para Viver, o roteiro peca pela falta de desenvolvimento. A rigor, apenas Luke (Alex Sharp, encantador) mostra uma complexidade em sua história: um dançarino profissional que lesionou o joelho e parou de comer para não engordar enquanto estivesse incapacitado de voltar para a companhia de balé. Seu envolvimento com Ellen acontece organicamente, e a ele também são reservadas as melhores linhas de diálogo. Mas a maioria dos personagens existe apenas para ocupar espaço, sem um tempo adequado para que nos importemos com eles (um bom exemplo onde isto é feito da forma correta é o filme Tempo de Despertar, com Robin Williams e Robert De Niro). Quando uma personagem sofre uma perda traumática, nunca mais é vista, de forma que não conseguimos mensurar o impacto daquela perda em sua vida e se houve algum aprendizado de sua parte em relação ao mal que a doença lhe causou; a psicóloga de grupo, Karen (Alanna Ubach), existe apenas para reunir os pacientes do Limiar no mesmo cômodo, suas sessões resultando em absolutamente nada; o pai de Ellen é um problema que nunca é resolvido, de forma que vira totalmente insignificante.

Fotografia a serviço da narrativa: Ellen sempre está no centro do quadro (superior esquerda, superior direita e inferior esquerda); quando está com pessoas saudáveis, as cores do ambiente contrastam com as da personagem (superior esquerda); quando ela está sozinha, as cores estão em consonância (superior direita); quando os personagens estão “em pé de igualdade”, a cada um é atribuída uma cor característica (inferior esquerda, um quadro que poderia facilmente estar em um filme de Wes Anderson); e, para reforçar a informação de que Luke está “há um bom tempo” internado (inferior direita), as cores de suas roupas se fundem com as do mobiliário do quarto.

Mas Marti Noxon, que dirige e assina o roteiro de O Mínimo para Viver, deve também ser elogiada por algumas decisões inteligentes: aproximadamente no meio do filme, Ellen, cujo nome significa “a mulher mais bonita”, pede para ser chamada de Eli, “a elevada, aquela que ascendeu”. É uma mudança da condição de admirada – ou lamentada – para a de lutadora, que não vai desistir. Ela também sempre coloca Ellen/Eli harmonicamente no centro dos quadros, passando a ideia do equilíbrio que a personagem pensa ter, mas ao mesmo tempo conotando certa letargia (ela pouco se mexe ao longo das tomadas, mérito que deve ser dividido com Lily Collins). E, naquele que considero o melhor set piece de O Mínimo para Viver, a diretora usa de uma fonte de luz dura para criar silhuetas que, em lugar de fragilizar os doentes, lhes dá beleza, como que expondo suas almas.

O trabalho do cinematógrafo Richard Wong salta à vista em momentos como esse: as únicas cores quentes (“felizes”) do quadro estão associadas a Luke, personagem que busca a recuperação e encara o tratamento de forma positiva

O saldo final é positivo. Ao não tratar seu filme como uma investigação para descobrir como Ellen ficou doente, não personaliza a doença. O Mínimo para Viver funciona tanto como alerta para o potencial destrutivo da ditadura da magreza quanto história de superação. Sem um ponto de chegada, que tornaria tudo mais fácil, mas um de partida. Recomendo, como complemento sobre o tema, o livro Anorexia: Diário de uma Adolescente, da brasileira Dominique Brand, que li há anos e recordei imediatamente ao ver este filme. Um trecho pode ser lido ao final deste link. Para assistir a O Mínimo para Viver, clique aqui.

Topo ▲