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Beren e Lúthien, Tolkien e Edith

Beren e Lúthien, Tolkien e Edith

Gustavo Pereira - 24 de março de 2017

Guia de publicações da série especial sobre a obra de J.R.R. Tolkien:

  • Parte 1: a respeito da narrativa indireta e a visão tolkieniana do Gênesis (clique no link)
  • Parte 2: os planos originais de Eru Ilúvatar e seus desvios (clique no link)
  • Parte 3: a influência de seu casamento na Balada de Beren e Lúthien e o simbolismo das Silmarils (você está aqui)
  • Parte 4: Túrin e a maldição de Morgoth (clique no link)
  • Parte 5: sobre Tuor, a influência dos Valar e a queda de Gondolin (clique no link)
  • Parte 6: as restrições a respeito da miscigenação na obra de Tolkien (clique no link)
  • Parte 7: a condescendência de Tolkien com o imperialismo (clique no link)

Com a destruição das duas lâmpadas e de boa parte dos projetos originais de Arda, os Valar ficaram cansados. Nesta fase de sua saga, Tolkien dá pistas sobre o que pensa do culto a objetos e como o grande amor de sua vida influenciou na história que o próprio considerava “a mais importante de todas”.

A vida em Valinor, as Silmarils e o dualismo luz/trevas

Com o fim da Primavera de Arda, os Valar se mudaram para o Extremo Oeste do mundo e criaram o Reino de Valinor, um recanto de perfeição e um vislumbre de como Arda deveria ser, não fosse pela interferência de Melkor. O convite feito aos elfos para que os seguissem até esta terra de paz provocou a primeira diáspora entre os Primogênitos, que foi se acentuando de acordo com a jornada para Valinor.

Muito se assemelham os elfos e os celtas, estes que também se subdividiram (dando origem, principalmente, aos gauleses, caledônios, belgas, bretões e batavos). Um povo desbravador de terras que se organizava em clãs e prestava adoração a divindades ligadas à natureza. Essas são características marcantes também nos elfos, que constituíram reinos por toda a Terra-média durante a Primeira Era e tinham como Valië de maior adoração Varda, “a senhora das estrelas”. Tanto elfos quanto celtas têm uma protolíngua de onde deriva uma miríade de idiomas da mesma família, mas díspares entre si. Os dois principais idiomas élficos são Quenya e Sindarin, embora existam outros sete derivados do Quendian Primitivo, que era falado pelos elfos quando despertaram em Cuiviénen.

Esquema simplificado da evolução da protolíngua élfica, veja em maior resolução no link (fonte: Wikipedia)

Nos tristes acontecimentos que mais tarde vieram a ocorrer, e nos quais Fëanor assumiu a posição de líder, muitos perceberam o resultado dessa cisão dentro da Casa de Finwë, considerando que, se Finwë tivesse suportado sua perda e se contentado em ser pai de seu poderoso filho, os caminhos de Fëanor teriam sido diferentes, e um grande mal poderia ter sido evitado. Pois a dor e a discórdia na Casa de Finwë estão gravadas na memória dos elfos noldorin.

O Silmarillion. De Fëanor e da libertação de Melkor, p. 69-70

 

Foi Fëanor quem fez as Silmarils, gemas que continham a luz das Duas Árvores. Ao mesmo tempo, esta era uma reverência ao trabalho dos Valar, uma demonstração do poder do elfo (nem mesmo Aulë pôde imitar seu feito) e o retrato de um tempo perdido onde não havia sofrimento. Este poder das gemas causou desastres durante a Primeira Era do mundo, o que pode indicar um certo desprezo de Tolkien pela idolatria sem propósito de objetos sagrados. A luz das Árvores Telperion e Laurelin tinha o objetivo de afugentar Melkor, enquanto as Silmarils foram engastadas em sua coroa.

Morgoth e sua coroa de ferro, com as três Silmarils engastadas (crédito na imagem)

Em Gênesis 1:4, “Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas”. Representando o Mal Absoluto, Melkor destruiu as lamparinas dos Valar, as Duas Árvores e só teve seu reinado na Terra-média refreado com a criação do Sol e da Lua. Mas mesmo as Silmarils queimando suas mãos e deixando-as para sempre pretas, Melkor (agora conhecido como Morgoth, “o inimigo que vem das trevas”) pôde ostentá-las.

As duas árvores de Valinor, antes de serem destruídas por Melkor e sua cúmplice, a aranha Ungoliant

O Sol e a Lua também diferem das lamparinas e das Árvores, pois não iluminam a Terra-média como se fosse um eterno dia, mas permitem um equilíbrio entre luz e trevas. Um mundo povoado tanto pelo Bem quanto pelo Mal, onde as criaturas estão à própria mercê e os deuses, reclusos.

A forma como, discretamente, a responsabilidade pela destruição das Árvores, o roubo das Silmarils e a perda das boas graças dos Valar pelos Noldor foi creditada ao segundo casamento de Finwë será abordada no item “O papel feminino”.

O Despertar dos Homens e a Balada de Leithian

Após o roubo das Silmarils, da partida dos noldor de Valinor e do Fratricídio de Alqualondë, quando Fëanor matou elfos telerin para roubar seus barcos e abandonou o meio-irmão Fingolfin à morte, os elfos em desgraça com os Valar chegaram à Terra-média, cada grupo a seu tempo – inclusive Fingolfin. Lá, fundaram reinos ocultos: Doriath, Nargothrond e Gondolin. Junto com eles, o Sol e a Lua, o povo dos Homens despertou. Fascinado pela luz do Oeste, fugindo das trevas do Leste e ignorante demais para entender as mensagens dos deuses. Seu primeiro contato foi com os elfos escuros, aqueles que nunca fizeram a travessia para Valinor.

Rei Thingol de Doriath, pai de Lúthien, em seu trono. Arte de Filat (fonte: DeviantArt)

Morgoth buscou corromper os homens tão logo eles despertaram (p. 175) no leste. Essa pode ser uma explicação, embora inconsistente, para o comportamento daqueles que serão mais tarde conhecidos apenas “lestenses”, “homens morenos” ou simplesmente “orientais”, os grandes, para não dizer únicos traidores espontâneos de toda a Terra-média.

 

Esses homens eram baixos e atarracados, de braços longos e fortes. Sua pele era morena ou amarelada, e seu cabelo era escuro, como seus olhos.

Suas casas eram numerosas, e alguns deles gostavam mais dos anões das montanhas do que dos elfos. Maedhros, porém (…), fez aliança com esses homens recém-chegados e deu sua amizade a seus maiores chefes, Bór e Ulfang (…). Os filhos de Bór eram Borlad, Borlach e Borthand; e eles acompanharam Maedhros e Maglor com lealdade(…). Os filhos de Ulfang, o Negro, eram Ulfast, Ulwarth e Uldor, o Maldito.

Esses acompanharam Caranthir, jurando-lhe fidelidade, e se revelaram pérfidos.

O Silmarillion. Da ruína de Beleriand e da queda de Fingolfin, p. 196

 

Na luta contra Morgoth, caçando as Silmarils e tentando se estabelecer em um mundo agora esquecido pelos deuses, os povos de Beleriand viviam em uma sociedade estratificada. O intercâmbio era permitido e bem-vindo, mas cada agente tinha um “lugar”. É neste cenário que acontece, segundo o próprio Tolkien, a principal história de sua mitologia, a primeira união entre povos e, consequentemente, uma grande derrota para Morgoth: A Balada de Leithian, ou A História de Beren e Lúthien.

Mais do que um autor, um homem apaixonado

Os elfos se viam na condição de mentores dos homens. Alguns se colocavam objetivamente num patamar evolutivo superior, dando-lhes nomes como “Usurpadores”, “Malditos” e “Desajeitados” (p. 123-124). Foi provando valor em campo de batalha que os elfos deixaram de ver os homens como crianças bobas e começaram a olhá-los com admiração e, principalmente, respeito. Um bom exemplo foi o do rei Finrod Felagund que, após ser salvo por Barahir na Batalha das Chamas Repentinas, o recompensou com amizade e auxílio permanentes de Nargothrond, além de dar-lhe seu próprio anel.

Barahir é pai de Beren, este que teve de enterrar o pai e viver como proscrito por anos até chegar vagando semi-morto ao reino de Doriath. A visão de Lúthien dançando em clareiras foi inspirada na dança que Edith Bratt, a esposa de Tolkien, fez para ele durante a Primeira Guerra Mundial, no Condado de Yorkshire. Todo este arco é uma inspiração direta – talvez a mais direta de todas – à vida do próprio Tolkien. Ele era um guerreiro, sua relação também era “impossível”, pois Edith era protestante, e a grande prova de amor de Lúthien, abrindo mão da imortalidade por amor, tem seu paralelo na biografia do autor com a conversão de Edith ao catolicismo.

À esquerda, Edith e John Tolkien em 1966; à direita, Lúthien e Beren “um pouco antes”. Arte de ullakko.

Beren guarda semelhança com Hércules, pois também precisou de um grande trabalho para se mostrar “digno” de desposar Lúthien. Se Tolkien enfrentou alemães nas trincheiras, Beren desafiou o próprio Morgoth. Lúthien, por sua vez, além da beleza inigualável, é a única mulher verdadeiramente forte em todos os escritos de Tolkien. Capaz de encantar o Diabo com uma canção e roubar-lhe uma das Silmarils, sem nunca desejar possuí-la, mas sim livrar seu amado de uma demanda fadada ao fracasso. Ao unir-se a Beren, Lúthien uniu as famílias dos elfos e dos homens pela primeira vez. A aliança é um tema recorrente na obra tolkieniana e está sempre relacionada com a vitória do Bem sobre o Mal.

No Wolvercote Cemetery, em Oxford, onde estão enterrados, a lápide do casal Tolkien ostenta os nomes “Luthien” e “Beren” (pode enxugar os olhos, a gente finge que não viu)

Já a escolha pelo isolamento está carregada de desgraça, e este é exatamente o tema da segunda das três grandes histórias da Primeira Era. A próxima publicação falará sobre Húrin e seus filhos, com ênfase em Túrin. Curta nossa página no Facebook e marque “ver primeiro”. Assim, você não perde nenhuma novidade!

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