Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Como Tolkien criou o reino de Númenor

Como Tolkien criou o reino de Númenor

Gustavo Pereira - 14 de julho de 2017

Guia de publicações da série especial sobre a obra de J.R.R. Tolkien:

  • Parte 1: a respeito da narrativa indireta e a visão tolkieniana do Gênesis (clique no link)
  • Parte 2: os planos originais de Eru Ilúvatar e seus desvios (clique no link)
  • Parte 3: a influência de seu casamento na Balada de Beren e Lúthien e o simbolismo das Silmarils (clique no link)
  • Parte 4: Túrin e a maldição de Morgoth (clique no link)
  • Parte 5: sobre Tuor, a influência dos Valar e a queda de Gondolin (clique no link)
  • Parte 6: as restrições a respeito da miscigenação na obra de Tolkien (clique no link)
  • Parte 7: a condescendência de Tolkien com o imperialismo (você está aqui)

A definição de “imperialismo” adotada para esta análise vem do InfoEscola:

 

“Imperialismo é a prática através da qual nações poderosas procuram ampliar e manter controle ou influência sobre povos ou nações mais pobres.

(…) Imperialismo se refere, em geral, ao controle e influência que é exercido tanto formal como informalmente, direta ou indiretamente, política ou economicamente.”

 

Logo, para provar a existência do imperialismo é preciso mostrar no texto original evidências de que Númenor fosse uma “nação poderosa” e que ela buscasse “manter controle ou influência” fora de seus domínios por meio da força.

Sobre sua geografia, Númenor remete a um pentagrama, estrela feita pela união dos pontos de um pentágono regular e cinco triângulos isósceles. A razão entre o lado do triângulo e a sua base, que também é o lado do pentágono, é a proporção áurea Φ (phi), chamada de “número perfeito”.

Também pode ser interpretada como uma estrela náutica, símbolo de sorte, novos caminhos e proteção. Númenor tinha a boa graça dos Valar, a amizade dos elfos e um desejo inato em seu povo de navegar além das fronteiras da ilha.

Mapa de Númenor (fonte: tolkien-maps.com)

Aldarion, Erendis, Mia e Sebastian

Esse desejo de desbravar o mundo singrando os mares é tema central em “Aldarion e Erendis: a esposa do marinheiro”, história que se passa durante o auge de Númenor e, para facilitar a contextualização daqueles que não a leram, uma espécie de La La Land de Tolkien: o casal que dá título ao conto tem sonhos conflitantes e precisa descobrir se é possível conciliá-los à vontade de ficarem juntos ou se é melhor que cada um siga seu próprio rumo.

Esta é uma narrativa polêmica, visto que seu protagonista não tem a retidão moral tipicamente tolkieniana. Beren, Eärendil, Cirion, Eorl e Aragorn, dentre outros personagens marcantes da saga, passam por testes críticos nos quais precisam escolher entre o que gostariam e o que precisam fazer, sempre escolhendo a segunda opção. Aldarion, ao contrário, “faz bico” até para assumir a posição de rei em Númenor, o que só acaba acontecendo quando seu pai, Meneldur, abdica da coroa em seu nome. Aldarion queria velejar e ver o mundo em vez de casar e ser rei. E nunca teve muito tato para lidar com quem se colocasse entre ele e seu objetivo.

 

—Não estudo os homens todos os meus dias? — perguntou Aldarion. — Sou capaz de liderá-los e governá-los como quiser.

—Diga melhor: alguns homens, de espírito semelhante ao seu — respondeu o Rei. — Há também mulheres em Númenor, pouco menos que homens; e a não ser por sua mãe, a quem você consegue de fato dominar como quiser, o que sabe delas? No entanto, algum dia deverá tomar uma esposa.

—Algum dia! — disse Aldarion. — Mas não antes de precisar, e mais tarde, se alguém tentar impelir-me ao casamento. Tenho outras coisas para fazer que me são mais urgentes, pois minha mente está ocupada com elas. “Fria é a vida da esposa do marinheiro”; e o marinheiro de propósito único, sem ligações com a terra firme, vai mais longe e melhor aprende a lidar com o mar.

Contos Inacabados. Aldarion e Erendis: a esposa do marinheiro, p. 200-201

 

A incompatibilidade entre Aldarion e Erendis: um quer explorar, a outra quer fincar raízes (fonte: DeviantArt)

Este conto explica muito sobre Númenor em aspectos como a regra de sucessão e a política externa. Todos os reis descendem de Elros, filho de Eärendil e irmão de Elrond. Admirados pelos Valar, foram agraciados com um tempo de vida muito maior do que o comum para a raça dos homens, embora ainda mortais. O longo tempo de vida, aliado à prosperidade do Reino e a natural curiosidade que foi incutida nos homens por Ilúvatar, fez com que parte do povo de Númenor desejasse ir além das próprias fronteiras, estabelecendo bases em regiões litorâneas da Terra-média e criando uma rede de influências. As duas principais características do imperialismo se fazem presentes, portanto.

Com o fim da Primeira Era, Sauron começou a se estabelecer como a principal ameaça maligna, principalmente após a forja dos Anéis do Poder. Os númenorianos, insatisfeitos com a mortalidade, resolveram “compensar” a frustração aumentando seu poder. Ar-Pharazôn, vigésimo quinto e último rei de Númenor, foi capaz de subjugar Sauron apenas com a presença de seu exército. Númenor acabou destruída pela falta não de força, mas de senso. Da mesma forma que Túrin, sua derrocada resulta da oposição direta aos desígnios dos Valar.

É uma política externa parecida com a dos Estados Unidos: uma expansão, muitas vezes não-amigável, justificada pela “guerra ao terror”. Na sua formação, Númenor parece movida por uma Doutrina do Destino Manifesto particular. Em linhas gerais, a Doutrina se baseava na força “especial” dos norte-americanos, a sua missão de “redimir” os territórios próximos, moldando-os à sua forma, e à inevitabilidade de assumir este protagonismo.

Númenor é a Terra Prometida, se você for homem

É uma sociedade com pouco espaço para mulheres. Mesmo quando a legislação foi alterada para permitir que a filha de um rei pudesse sucedê-lo, seus reinados não são registrados com honras (para mais detalhes, leia o capítulo “A linhagem de Elros: Reis de Númenor” em Contos Inacabados). Em “A esposa do marinheiro”, Erendis é considerada uma figura desagradável, até mesmo uma ameaça quando decide se afastar de Aldarion, ponto fim a um casamento que nunca aconteceu de fato. A ideia de que ela educasse Ancalimë para não se dobrar às vontades dos homens não é tratada positivamente. O fim da própria Erendis conota certo menosprezo por parte de Tolkien a respeito da emancipação feminina, levando em consideração os constrangimentos pelos quais passou antes de decidir se separar do marido e questionar a sociedade patriarcal de Númenor.

Erendis: marginalizada (fonte: DeviantArt)

 

De Erendis está dito que, quando a velhice se abateu sobre ela, negligenciada por Ancalimë e em amarga solidão, ela voltou a ansiar por Aldarion; e, sabendo que ele partira de Númenor naquela que acabaria sendo sua última viagem, mas que se esperava que ele logo retornasse, ela por fim deixou Emerië e viajou incógnita e desconhecida até o porto de Rómenna. Lá parece que encontrou seu destino; mas somente as palavras “Erendis pereceu na água no ano de 985” permanecem para indicar como isso ocorreu.

Contos Inacabados. Aldarion e Erendis: a esposa do marinheiro, p. 246

 

Esta citação está no tópico “O desenrolar posterior da narrativa”, no qual Christopher Tolkien estabelece o possível final da história a partir de rascunhos deixados pelo pai. O Tolkien mais velho abandona a história no ponto em que Aldarion considera um absurdo que Erendis pense em criar a filha dos dois afastada dele – que sempre vivia fora velejando, é bom que se diga. A partir daí, esquemas em diferentes níveis de complexidade a respeito do desfecho de cada personagem. A Erendis, um “pereceu na água no ano de 985” foi o bastante. Simbólico.

Esta sociedade belicosa, amargurada e ambiciosa foi presa fácil para Sauron. Ele soube disparar os gatilhos certos para fazer homens se acharem maiores do que deuses e iniciar uma guerra. E, apesar da destruição completa do Reino de Númenor, os Valar foram misericordiosos com aqueles que se mantiveram fiéis durante a rebelião, sendo possível a eles uma fuga de volta para a Terra-média, onde fundaram os reinos de Gondor e Arnor, conhecidos dos leitores de O Senhor dos Anéis, pois é para onde o rei Aragorn retorna.

Não pôde retornar sem antes ajudar a Comitiva do Anel a destruir o Um Anel de Sauron, que fora forjado muito tempo antes. Escreverei sobre isso no próximo texto, que será publicado no dia 4 de agosto. Siga o Plano Aberto no Facebook, no Twitter e no Instagram para não perder!

Topo ▲