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Anon

Anon

Matheus Fiore - 5 de maio de 2018

Andrew Niccol é um cineasta que demonstra muito apreço pela ficção científica. Seu maior sucesso, “Gattaca”, de 97, talvez seja sua melhor experiência no gênero. Mesmo que o diretor tenha projetos fora da ficção científica, como o interessante “Senhor das Armas”, de 2005, ele sempre acaba retornando ao gênero no qual sente-se confortável. Em 2011, fez o irregular “O Preço do Amanhã”, e, em 2013, o seu pior trabalho: “A Hospedeira”, baseado no livro de Stephenie Meyer. Quando se fala de ficção científica e Andrew Niccol, então, é difícil saber o que esperar, porque o artista neozelandês pode entregar de tudo. O que esperar, então, de “Anon”, recente lançamento de Niccol protagonizado por Clive Owen (“Filhos da Esperança”) e Amanda Seyfried (“Meninas Malvadas”)?

A obra tem uma clara intenção de contextualizar-se em seu tempo. Em meio a tantos escândalos de vazamento de dados e invasão de privacidade, como os casos de Julian Assange e Edward Snowden, é esperado que o cinema (e a arte, em geral), reflitam essa preocupação com a perda de segurança das pessoas em virtude dos avanços tecnológicos. Isso foi visto, recentemente, tanto em obras que trataram o tema de forma mais direta, como o documentário “Citizenfour”Snowden, filme que conta a história do próprio Edward Snowden, quanto em filmes mais ficcionais, como a série Black Mirror” e o longa O Círculo.

Em “Anon”, vemos um mundo sem privacidade ou anonimato. Tudo que as pessoas vêem é registrado e pode ser acessado pelas autoridades. Sal Frieland (Clive Owen) é um detetive que vive uma rotina monótona, resolvendo casos por meio desse “olho que tudo vê”, até que se depara diante de algo novo: uma série de assassinatos nos quais não há registro visual de quem é o assassino. A busca o leva à hacker Anon (Amanda Seyfriend), que vive reclusa na maior parte do tempo e não possui nenhum registro de sua existência.

Na construção do mundo, aspecto de responsabilidade tanto da fotografia quanto da direção de arte, estão as maiores qualidades de “Anon”. Para construir um mundo engolido pelo “olho que tudo vê” e pelas grandes corporações, a obra traz muitos planos abertos, com cenários grandiosos e ruas vazias. O vazio, aliás, é um dos grandes elementos definidores da atmosfera do longa. São inúmeros os planos que trazem cenários totalmente limpos ou personagens ocupando espaços pequenos do plano. Há, portanto, um retrato da despersonalização, da perda de individualismo. Há, no meio de tanta informação disponível, um vazio que permeia a existência daqueles personagens. Na introdução do filme, inclusive, há um momento no qual a música diegética sobrepõe a extra-diegética, uma boa forma de mostrar como há um excesso de elementos simultâneos coexistindo naquele universo. 

Ajuda muito, também, o fato de todo esse mundo ser construído sobre duas cores: o cinza e o azul claro. Cria-se uma artificialidade que parece inerente ao mundo dominado pela tecnologia. Já nos ambientes internos, o uso das cores, mesmo que tenha mais variações, também tem simbolismo. A casa de Sal, por exemplo, tem paredes com um rosa desbotado, o que faz alusão direta ao estado psicológico do personagem, que nunca superou a perda de um filho em um acidente e, por isso, vê seu amor se tornar pálido, estéril.

A falta de vida desse mundo, claro, se reflete em seus habitantes. Quando vemos uma mulher encontrar um cadáver, por exemplo, não há expressão de medo ou desespero pela presença do assassino, mas sim apenas um olhar curioso. Essa frieza é perceptível em quase todo o elenco, com exceção de Sal, que diversas vezes parece à beira de um colapso emocional em virtude de sua incapacidade de superar a perda do filho.

Apesar de ter boas ideias, “Anon” nunca consegue amarrá-las em uma narrativa focada. A obra ora parece querer ser sobre a relação das pessoas com a memória, ora parece mais interessada em discutir privacidade e anonimato. Niccol, que, além de dirigir, escreve e co-produz o longa, não consegue aliar estética e conteúdo de forma que todos os elementos filmicos conversem com um tema principal. Como resultado, “Anon” é um filme irregular, não trabalhando nenhum de seus conceitos pelo tempo necessário para que eles se tornem boas peças dramáticas. Todos os elementos no texto elogiados, portanto, são uma interessante construção de mundo, mas que pouco conversam com o objetivo central da obra: falar sobre privacidade, isolamento e segurança.

A culpa dessa distância entre forma e conteúdo é do roteiro. O texto de Niccol, além de se ancorar em clichês sexistas – o único elemento que conecta afetivamente Sal e Anon é a imagem da hacker nua -, também peca por seu foco equivocado. Muito mais interessado do que em trabalhar as consequências do mundo apresentado, o roteirista parece querer apenas utilizar tudo como um enfeite para uma trama de investigação pueril e pedestre, com direito a reviravoltas que não só não surpreendem, como também não enriquecem aquele mundo com suas revelações. Para coroar a falta de inspiração do texto, as motivações dos personagens inexistem. Não compreendemos o que move o vilão ou os heróis, o que é um pecado capital para qualquer obra que queira criar empatia entre público e personagens (ou, no mínimo, tornar as jornadas daquelas pessoas críveis).

Bem aquém dos melhores trabalhos do diretor, “Anon”, pelo menos, está igualmente distante das mais recentes produções da Netflix – longas como “Mudo”“Tit㔓Cloverfield: O Paradoxo” são, no mínimo, embaraçosos. Com uma clara inspiração em “Blade Runner”, o filme alia uma pegada noir em sua parte investigativa com o existencialismo inerente aos elementos de ficção científica – perda de identidade, vazio existencial e distanciamento social. Mesmo que boa parte dos conceitos sejam mera reciclagem de outras obras, é um filme capaz de entreter e de proporcionar interessantes reflexões sobre privacidade e segurança.

Uma pena que Niccol pareça não ter percebido a quantidade de material interessante que é desperdiçada. O artista parece, assim como os personagens de seu filme, perdido no oceano de informação.

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