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Arábia

Arábia

Matheus Fiore - 14 de abril de 2018

“Um bilionário árabe descobre que os pedreiros brasileiros são muito baratos. Ele, então, decide contratar cinco para chefiarem a construção de seu castelo. Quando a equipe estava no avião, a caminho do país do poderoso chefe, há uma turbulência que força a aeronave a fazer um pouso de emergência no deserto. Ao sair da nave, um dos pedreiros diz para os colegas: ‘areia aqui, areia ali, areia lá… Quanta areia! Imagina quando chegar o cimento!'”

A piada contada por um dos operários de “Arábia” pode não ser a oitava maravilha do mundo, mas resume perfeitamente tudo que o filme de Affonso Uchoa e João Dumans tem a dizer. A trama acompanha Cristiano (Aristides de Sousa), um rapaz que, com um passado de pobreza e criminalidade, vive como nômade, arrumando empregos em fábricas, fazendas e comércios das cidades do interior de Minas. Cristiano é uma pessoa sem laços, solitária, que consegue se aproximar apenas dos que vivem em condições similares.

“Arábia” retrata bolhas. Alienação e realidades paralelas. Assim como os pedreiros da piada não sabiam que estavam em um deserto, e não em um canteiro de obras gigante, Cristiano é uma pessoa privada de conceber seu próprio mundo. O protagonista é uma figura marginalizada, sempre melancólica e, pela baixa escolaridade, com dificuldade de concatenar suas ideias. A bolha, porém, não é exclusiva do personagem: o adolescente que lê o diário do protagonista, por exemplo, vê um jornal e seu único impulso é usar o papel para limpar sua mão, sem sequer cogitar ler as manchetes (que trazem de casos de violência a intolerância religiosa). 

O filme de Affonso Uchôa e João Dumans, então, é perfeito para comparar os isolamentos sociais e ideológicos que permeiam a atual conjuntura social do Brasil. O foco, porém, é outro: a jornada de Cristiano, sua relação com o trabalho e sua busca por um norte. “Arábia” dá para seus personagens um cenário sufocante e melancólico: não há esperança de melhora para eles – mesmo que alguns se iludam de que há, apenas para terem fracassos ainda mais impactantes. Entre os vários sujeitos que se tornam companheiros de Cristiano ao longo da narrativa, alguns morrem, outros são demitidos, mas todos vivem em um mundo no qual a ascensão social parece algo impossível. Há um momento, por exemplo, em que o protagonista diz já ter feito tudo que poderia fazer na vida, e menciona apenas ocupações atreladas às tarefas braçais, como embalar produtos e carregar cimento, o que entrega seu desconhecimento sobre outros campos da vida.

O isolamento é estabelecido não só pelos eventos que permeiam as vidas dos operários, mas pela construção imagética do filme. Há sempre uma escuridão que envolve os personagens. Não são raros os planos que trazem Cristiano dirigindo de madrugada, diante de uma estrada escura e sem iluminação, simbolizando sua falta de norte, por exemplo. O trabalho do diretor de fotografia Leonardo Feliciano também faz uso da profundidade de campo para estabelecer o isolamento dos trabalhadores: quando está na beira da estrada, Cristiano é filmado com uma profundidade de campo curta, o que distorce as imagens dos carros na estrada do fundo do plano, como se eles e o protagonista estivessem em realidades paralelas, intocáveis.

A escolha do que mostrar e do que não mostrar também influencia no tom da narrativa. Mortes e doenças, por exemplo, são apenas comentadas pelo narrador, mas não expostas ao público – e, quando ocorrem, são rapidamente cortadas pela montagem, o que brilhantemente estabelece a frieza com que tais momentos são percebidos pelos personagens. Essa escolha não é, de forma alguma, uma maneira de suavizar o peso dramático de “Arábia”, mas sim um bem sucedido esforço para mostrar como tais elementos se tornaram tão banais na rotina dos marginalizados, que se transformaram em reles notas de rodapé nas histórias. O processo de mecanização do homem em prol da construção de uma “classe” de trabalhadores desprovidos de personalidade gera o desapego com a vida, a desumanização.

Igualmente importante é a forma como são filmados os operários enquanto trabalham. Em boa parte das cenas, os trabalhadores estão na contraluz, o que faz com que vejamos apenas suas silhuetas engolidas pelas grandes fábricas, o que engrossa a ideia de que, além de marginalizados, aqueles operários são, também, despersonalizados. Há uma constante perda de humanidade nos cidadãos sujeitados a trabalhos tão desgastantes e que consomem as vidas dos trabalhadores, algo que o próprio Cristiano nota ao comentar como sua rotina de trabalhar de madrugada e dormir pela manhã destrói sua saúde. A escolha de filmar, em alguns momentos, esses trabalhadores de costas, nos privando de ver seus rostos, também é um recurso fantástico que fortalece a ideia de perda de individualismo diante de um sistema de trabalho opressivo.

Ante uma realidade tão dura e excludente, “Arábia” poderia facilmente tornar-se um incentivo à revolta. Essa ideia, porém, é sempre tratada com discrição, como quando o protagonista utiliza uma camisa de Che Guevara. O não incentivo é, todavia, um acerto –  afinal, os operários estão alienados pelo modelo de sociedade. Parecem desconhecer que é possível viver uma vida além do exaustivo trabalho braçal. Para eles, portanto, resta a mais poética saída possível: a arte. Mesmo que inconscientemente, Cristiano encontra na escrita e na atuação os alívios da dura rotina. É interessante, também, como a arte surge como manifestação da realidade dos personagens. Quando Cristiano e um colega tocam violão, o rapaz que viveu uma vida inteira na fazenda tocará um sertanejo sobre a rotina no campo, enquanto o protagonista, que já foi preso, tocará uma música sobre criminalidade.

O sujeito marginalizado que protagoniza o filme não é essencialmente melancólico, o é pela estrutura de sociedade em que vive. A ele e a todos os operários, do filme e da vida, cabe lidar ou transformar esse fato. “Arábia” tenta mostrar que a vida não deve existir em função do trabalho, e que os raros momentos de felicidade e prazer não precisam ser tão raros. “Arábia” não se propõe a dar soluções, pois sua intenção é apenas retratar a realidade dos que já tiveram suas vidas comprometidas pelo processo de mecanização e desumanização do trabalhador. É uma obra-prima por, aliando forma e conteúdo de maneira exemplar, se transformar no mais belo exercício de empatia visto em anos.

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