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Black Mirror: Bandersnatch

Black Mirror: Bandersnatch

Filme interativo da série de Charlie Brooker é claro sinal da perda de rumo de “Black Mirror”

Matheus Fiore - 28 de dezembro de 2018

“Black Mirror” sempre teve seus gimmicks para enfeitar e mascarar seu conteúdo. A tecnologia, afinal, inicialmente não era o tema da série, mas um dispositivo narrativo para falar sobre a humanidade e seus problemas – sistemas políticos e econômicos, moral, ética, culpa, relacionamentos, e por aí vai. Ao longo dos anos, porém, essa relação entre conteúdo (as ideias que norteiam os episódios) e forma (a estética, as escolhas cinematográficas que possibilitam que a narrativa desenvolva suas ideias) foi ficando mais nebulosa, ao ponto de, hoje, a tecnologia e suas novidades interativas serem mais importante do que a própria narrativa da obra.

Se episódios como “Hino Nacional” e “Volto Já”, respectivamente da primeira e da segunda temporada, trabalham com pouca (ou nenhuma) tecnologia para falar sobre a relação da humanidade com a arte, alienação e luto, capítulos como “Black Museum”, do quarto ano, são um amálgama do que há de pior na série. “Black Museum” é inteiramente dedicado a referências e brincadeiras sobre a tecnologia distorcendo a humanidade, algo que não era o ponto central da série, mas parece ter se tornado quando a Netflix comprou o programa. Tal episódio é um retrato nítido de forma sobrepondo conteúdo, entregando ao espectador apenas um puzzle de referências que mascara a ausência de ideias.

Chegamos então ao primeiro filme de “Black Mirror”, o recém-lançado “Bandersnatch”, que acompanha a trajetória de um rapaz que está desenvolvendo um jogo de videogame nos anos 80. Aqui, “Black Mirror” traz uma ideia nova interessante: a interatividade. Agora, o espectador terá de escolher o destino do personagem e de sua trama, pois constantemente será jogado em situações com duas possibilidades.

“Bandersnatch” não é uma obra ruim. Boa parte dos momentos de escolha são bem selecionados de forma a manter a personalidade do personagem – há, por exemplo, momentos em que o espectador sente que deveria estar tomando uma decisão, mas não recebe a opção de escolher o rumo, pois qualquer ação que não fosse a tomada pelo próprio personagem entraria em conflito com a personalidade do protagonista, Stefan. Outros momentos de escolha interessantes são os que o espectador escolhe algo surpreendente se observarmos sob o ponto de vista do protagonista. Nesses momentos, Stefan até segue a orientação escolhida pelo público, mas parece ter dificuldade de conceber o que acaba de dizer, como se suspeitasse de que está sendo dirigido. 

O problema surge mesmo quando começamos a dissecar as escolhas de “Bandersnatch” e como elas impactam na narrativa. Dependendo do rumo seguido pelo público, o filme poderá falar sobre relações paternas superprotetoras, alienação, teorias conspiratórias, traumas, vício em trabalho, fragilidade emocional… Há vários temas sugeridos pelas escolhas que fazemos ao longo do filme, mas praticamente nenhuma delas é um tema de fato desenvolvido. A impressão que passa é que o roteiro de Charlie Brooker está tão encantado com a possibilidade de criar uma obra interativa, que se esquece de que o que a torna viva não é a possibilidade de o público decidir, e sim o público sentir o peso dessas decisões.

Quando, por exemplo, fazemos uma escolha que compromete a vida de um personagem para apenas segundos depois voltarmos à tela anterior e recomeçarmos o trajeto, “Bandersnatch” retira todo o peso dramático que aquelas escolhas poderiam acarretar. Em vez de fazer o espectador sentir o peso de suas decisões e imaginar-se pressionado diante dos dilemas, a única coisa que “Bandersnatch” consegue é criar um puzzle no qual o espectador tenta apenas desvendar todas as camadas.

A constatação mais triste é a de que os temas levantados por “Bandersnatch” são interessantíssimos. O questionamento da natureza da própria realidade feito pelo protagonista, por exemplo, é algo intrínseco à essência da série, e se fez presente em inúmeros episódios. Aqui, porém, Stefan parece partir do nada para lugar nenhum. As múltiplas escolhas que podemos fazer nos levam a ter apenas curtos vislumbres do que de fato se passa naquele universo e, pior, são possibilidades conflitantes entre si, o que faz com que o filme fique, tematicamente, ainda mais difuso.

“Bandersnatch”, então, é o exemplo perfeito de uma obra tão preocupada com sua forma que se esquece do conteúdo. O fascínio pela criativa ferramenta narrativa é nítido e exacerbado mas, diferente dos momentos áureos da série antológica inglesa, aqui não há nem um grande plot twist, nem a construção de uma ideia que é fortalecida pelas escolhas narrativas da obra. No fim das contas, o espectador provavelmente se pegará mais curioso para “zerar” o filme e saber todas as suas possibilidades do que de fato desafiado ou encantado pelos temas por ele levantados. É um conteúdo narrativamente criativo, mas intelectualmente inócuo.

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