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Festival Ecrã – Por Dentro; Pachinko; Não Me Fale Sobre Recomeços

Festival Ecrã – Por Dentro; Pachinko; Não Me Fale Sobre Recomeços

Matheus Fiore - 19 de julho de 2018

“Por Dentro”, de Vicky Langan e Maximilian Le Cain – ★★★

Utilizar o silêncio para falar sobre incomunicabilidade e infelicidade é uma alternativa tão poderosa quanto impopular. Afinal, no circuito comercial, são raras as vezes em que um filme tem poucos diálogos. Mudo, então, é ainda mais incomum. Felizmente, a obra de Langan e Le Cain, por não ter a menor pretensão de ser comercial, faz uso desse e de muitos outros recursos sem ressalvas, e o resultado é um interessante estudo sobre a infelicidade de uma mulher.

O filme de 70 minutos acompanha uma moça que vive em uma casa de campo com seu marido. Ao longo da projeção, vemos diferentes momentos da rotina desse casal. O fato de a montagem trazer trechos incompletos de momentos do dia-a-dia da personagem é importante, tanto para estabelecer uma ausência de tesão por aquele estilo de vida, quanto para criar uma estranheza narrativa que muito condiz com os sentimentos dos personagens.

Há escolhas de planos interessantes, como os dois quadros que abrem a projeção, que trazem a protagonista de costas, fotografada em preto e branco. Essa sequência de imagens é muito competente por estabelecer rapidamente o desinteresse e a distância existentes entre a protagonista e o mundo.

Também é notável como a direção utiliza justamente os momentos nos quais o casal está junto como os de maior esquisitice estética. Aqui, porém, há uma obviedade que quebra a sutileza da obra. Há um beijo no qual as bocas mal se tocam, por exemplo, que é uma forma pedestre demais de estabelecer a falta de química presente na vida sexual do casal. Também há simbolismos forçados, como o homem dormindo por cima de sua esposa, como se este fosse um peso em sua vida.

Quando trabalha o desconforto e descontentamento de seus personagens de forma sutil e alegórica, Por Dentro é bem interessante; quando utiliza simbolismos muito diretos, acaba quebrando o tom da narrativa e cedendo ao caminho mais fácil. É um exemplar peculiar de um cinema experimental que versa sobre relacionamentos transformando em elementos palpáveis os problemas “invisíveis” da vida a dois.

“Pachinko”, de Luis Grane – ★★★★

O interessante curta surgiu de uma viagem de Luis Grane ao Japão. O cineasta registrou imagens do cotidiano japonês e, então, utilizou referências da própria cultura japonesa para desenhar por cima dos vídeos. 

Pachinko consegue ser um curto mas eficaz ensaio sobre a contradição entre a rigidez que permeia a sociedade japonesa e sua arte e cultura. Desde elementos da arquitetura aos animes, mangás e tokusatsus, a cultura do país é uma explosão de cores e sentimentos que, quando sobreposta à frieza das ruas de Tóquio, se transforma num lindo exemplar de como a arte pode ser uma manifestação de abstração de uma rotina cartesiana.

Não Me Fale Sobre Recomeços, de Arthur Tuoto – ★★★★

É difícil escrever sobre Não Me Fale Sobre Recomeços, filme que, por si só, já é uma desconstrução de uma visão de mundo, algo que a crítica busca ser em relação à obra que analisa. É possível pensarmos essa obra como uma crítica em filme, portanto. Arthur Tuoto utiliza desde registros feitos por câmeras de celulares até trechos de filmes, propagandas e videogames para, por meio do uso da montagem, criar uma interessante dialética na combinação das imagens.

Os registros de celulares mostram, por exemplo, a opressão estatal. Conflitos em manifestações, violência policial, resquícios de um legado ditatorial não muito distante. Tuoto, então, traz imagens de obras de arte que fazem contraponto a esses eventos e sentimentos. Personagens de um jogos aparecem caminhando pelos céus ou mesmo trocando beijos, mostrando como a arte é o meio de libertação ou busca por algum onirismo diante de uma realidade rígida.

Há também um estudo sobre o capitalismo atual e suas criações de demanda – o vídeo de pessoas celebrando a abertura de uma loja da Apple é, no mínimo, embaraçoso. Há muito em Não Me Fale Sobre Recomeços. E são conceitos, ideias e ligações que merecem ser experimentadas às escuras. É um filme que busca, por meio desta dialética de imagens, uma reinvenção e transformação constantes, que são precisamente simbolizados pelas repetidas imagens de personagens do jogo Grand Theft Auto cometendo suicídio – a morte é um símbolo clássico para transformação, afinal.

É, em sua totalidade, uma análise sobre o poder da arte e de sua linguagem, desde a criação (e destruição) de narrativas ao potencial de escapismo trazido por ela. Mas Não Me Fale Sobre Recomeços mostra a arte também como manifestação de resistência, de revolta – as pichações e demais formas de “vandalismo” selecionados por Tuoto são algumas das exteriorizações artísticas mais interessantes do filme.

Tuoto consegue, então, fazer de seu filme não só uma crítica, mas uma amálgama de imagens que geram reflexão, reinvenção e transformação. Não Me Fale Sobre Recomeços é anárquico por sua forma, preciso por seus apontamentos e extremamente eficiente por fazer tudo isso por meio de uma profusão de imagens muito bem encaixadas, sem desperdícios ou excessos.


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