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O Ódio Que Você Semeia

O Ódio Que Você Semeia

Apesar de se conformar com pouco, adaptação de obra literária homônima apresenta boas ideias

Matheus Fiore - 5 de dezembro de 2018

George Tillman Jr cria dois mundos paralelos em “O Ódio Que Você Semeia”. Utilizando uma cidade fictícia nos Estados Unidos, o cineasta estabelece dois blocos geográficos que, socialmente, são praticamente opostos. De um lado temos Garden Heights, bairro de população majoritariamente negra, que convive com o crime trazido pelos conflitos de gangues do tráfico; do outro há Williamson, um bairro de população majoritariamente branca, onde todos possuem boa situação financeira e os índices de criminalidade são baixos.

No meio dos dois blocos, “O Ódio Que Você Semeia” tem sua protagonista, Starr Carter (Amandla Stenberg). A jovem vive na região de Garden Heights, mas seus pais, pensando no futuro de Starr e de seus irmãos, Seven e Sekani, os matriculou na escola mais cara da cidade, que fica em Williamson. A obra de Tillman Jr, portanto, flutua entre esses dois mundos, mostrando suas diferenças e conflitos para desenvolver discussões sobre o racismo em suas mais variadas formas.

É um recurso interessante o da criação dessa separação de mundos, com uma barreira social que só Starr e seus irmãos cruzam ao longo da trama. Na obra, isso resulta na criação de uma persona: Starr age de uma forma quando com seus familiares e amigos de bairro, e de outra quando na escola, cercada por pessoas brancas e de elite. A fotografia de Mihai Malaimare Jr, o figurino de Frank L. Fleming e a direção de arte de William Arnold fortalecem essa diferenciação com ferramentas eficientes. A região de Garden Heights é caracterizada por cenas ensolaradas e saturadas, criando um ambiente aconchegante para a protagonista. Em contrapartida, as cenas em Williamson são bem diferentes, apresentando uma luz mais esbranquiçada e gélida, que é acompanhada por figurinos azuis, brancos e pretos, tanto na escola quanto na casa das amigas da protagonista.

Essa diferenciação é importante para criar uma noção de dois mundos paralelos em “O Ódio Que Você Semeia”, já que a jornada de Starr é por aceitar sua verdadeira personalidade e parar de se esconder quando frequenta o lado elitizado da cidade. A protagonista vive ocultando seu próprio corpo: prender o cabelo é algo que a personagem faz constantemente quando está na escola; além de, por boa parte da projeção, utilizar casacos largos – e em alguns momentos, até capuz –, para se disfarçar na multidão.

Essa divisão, mesmo que faça muito sentido para criar mundos antagônicos, é subaproveitada. “O Ódio Que Você Semeia” se contenta em criar estereótipos simples demais. Enquanto Maverick, o pai da protagonista, parece ser o pai perfeito, todos os personagens do colégio de Starr agem de acordo com a cartilha do branco racista que não sabe que é racista. Já Khalil, o amigo de infância de Starr, é o clássico jovem negro rebelde que se inspira por Tupac e Kendrick Lamar. Infelizmente, relações que, na primeira metade do filme, parecem ser de suma importância para o desenvolvimento da trama – como o namoro entre Starr e um garoto branco –, são reduzidos a piadas baratas e nada mais.

Há alguns problemas sérios de coerência no roteiro. Em diversos momentos, os personagens não agem de forma crível, seguindo pelos rumos que a história necessita sem esquecer de, antes, aparar pontas soltas de acontecimentos anteriores. Há, por exemplo, um momento no qual uma personagem está indo levar um amigo gravemente ferido para o hospital, quando no meio do caminho, ela decide desistir para aderir a um protesto… O intenso ferimento do rapaz é utilizado como gatilho dramático mas, em seguida, é descartado para que a trama avance para um acontecimento “maior”. O problema se apresenta de outras formas. Há personagens que não parecem ter o mínimo de personalidade além das características bem clichês. O antagonista King (Anthony Mackie), por exemplo, só está em cena quando o script precisa criar uma situação de tensão, utilizando este personagem como ferramenta para isso. Não parece que os personagens têm rotinas próprias e, eventualmente, têm seus caminhos entrelaçados, e sim que todos vivem em função da jornada de Starr, a protagonista.

Pelo menos esse protagonismo cai em boas mãos. Amandla Stenberg consegue apresentar uma personagem coerente com seu texto, iniciando a projeção com uma postura mais passiva e tímida – construída por minúcias, como o constante desvio de olhar que a atriz utiliza, além do sorriso tímido – e que, aos poucos, é confrontada pelas situações nas quais a jovem se vê inserida, fazendo com que haja uma transformação. Starr é uma jovem que tem um desenvolvimento nítido e eficiente, que diferente do filme, têm sua zona de conforto questionada e, assim, cresce. Parte de uma jovem introspectiva para uma personagem atuante. É uma escolha muito elogiável, por exemplo, a de trocar a narração em off pelos diálogos, mostrando como Starr aprende a verbalizar sua dor e sentimentos.

Nem de longe “O Ódio Que Você Semeia” é um mau filme, mas seu roteiro e sua direção parecem se contentar com algumas poucas ideias. A obra desenvolve um cenário muito interessante e consegue fazer diferentes temas emanarem de cada cantinho da obra. Apropriação cultural, racismo estrutural… Assuntos de enorme relevância nas discussões sobre racismo na atualidade marcam presença, mas poucos são de fato transformados em arcos e discussões. Criar estereótipos que representem as diferentes faces do racismo é interessante, mas insuficiente se o filme quer de fato mergulhar no assunto, e não só molhar os pés na superfície.

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