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‘Um Lugar Silencioso’ e as interações pessoais

‘Um Lugar Silencioso’ e as interações pessoais

Yasmine Evaristo - 25 de setembro de 2018

A insegurança, assim como a morte, é elemento que compõe as narrativas pós-apocalípticas. Ambas servem de combustível para que as personagens inseridas nessa situação lutem pela sobrevivência. Em meio a destroços e à beira da loucura, há um excesso de ausências. Os espaços esvaziados são maiores, tanto os físicos quanto os comunicativos. Em “Um Lugar Silencioso”, a proposta é a sobrevivência de uma família, em um mundo no qual os barulhos são a afirmação do seu fim. Isolados, eles se comunicam por meio de sinais ou sussurros, o que depende do local em que se encontram. Caso isso não aconteça, as criaturas que dominaram o planeta as perseguirão e matarão, em retaliação à manifestação produzida em volume mais alto.

Considerando que o silêncio absoluto não existe em “Um Lugar Silencioso”, os diversos ouvidos e atos de ouvir envolvidos são demarcados pelo tratamento de som dado. Essa edição e mixagem personalizam como cada personagem escuta. O ruído, os sons da natureza e os produzidos pelos humanos se misturam como no cotidiano. Suas definições – do que é ou não um barulho – são alteradas de acordo com a personagem que está evidenciada. Logo no início, temos os integrantes da família, em uma loja abandonada, buscando por suprimentos. Ouvimos seus passos, os toques nos objetos, o vento e todo o deslocamento feito pelo local. Não há nada artificial, em funcionamento, emitindo alguma vibração. Um pouco após essa sequência, um objeto artificial que emite sons ao ser conectado à energia produz uma sequência de ruídos. Nesse momento, a relação do que é som e do que é ruído é estabelecida.

Precisamos entender aqui que um som comum aos nossos ouvidos, na condição em que nos encontramos (buzinas, sirenes, rádios, etc.), são, naquele universo, um ruído. Ou seja, qualquer emissão sonora que nos atrapalhe em dado momento é um ruído.

No episódio “Running Around” da série “Cold Case”(2003-2010), após a visita a uma aldeia Amish, a personagem Nick Vera (Jeremy Ratchford) questiona a seus colegas de trabalho se eles já perceberam que, nos momentos em que há apagões na cidade, os zumbidos cessam. Os colegas afirmam não perceberem isso e ele reitera que sim, os zumbidos cessam. Associando esse fragmento da série à narrativa do filme “Um Lugar Silencioso” aponto que, em outros textos, existe o entendimento dos sons das tecnologias humanas como algo inoportuno.

um lugar silencioso emily blunt

O silêncio como censor

Podemos avaliar que, ao escolher lidar em sua narrativa com criaturas que abominam o barulho, estamos condicionando a população daquela realidade ao mínimo de comunicação possível. Surgem então, questionamentos. Até onde o problema é o que falamos? Ou seria como falamos? As criaturas não deixam de refletir a dificuldade de ouvir ao outro nas relações humanas. Para Alberto Manguel, em “Leituras proibidas”, censura é “o corolário de todo poder”. Neste capítulo do livro “Uma História da Leitura”, o autor exemplifica as relações de censura no consumo de livros e/ou textos escritos na história da humanidade. Tanto nesse trecho quanto em “Um Lugar Silencioso”, podemos observar as relações de comunicação sendo alteradas.

Em situações que este silenciamento é imposto, o idealizado é falarmos sobre nós e, apenas se possível (e desejável), ouvir ao outro. E quando o outro diz o que não queremos ouvir? O ignoramos ou o calamos. A violência que esse impedimento, que esse apagamento, proporciona é a fragilização da comunicação entre os que compartilham de uma mesma fala (ato de verbalizar). A censura é uma prática ativa na sociedade, usada como meio de controle por quem exerce o poder.

Nesse ambiente de medo, a obra do diretor, co-roteirista e ator John Krasinski mostra que sempre há uma maneira de burlar esse tipo de censura e estabelecer alguma comunicação.  A linguagem é adaptada e ressignificada, de forma a preservar os vínculos. As táticas de sobrevivência são desenvolvidas e, os hábitos, adequados. Em “Uma História da Leitura”, observamos que é comum a prática de apagamento das culturas que antecedem algum regime. Queimar livros é a garantia de sobrepor a cultura do dominador à cultura do dominado.

As obras de Protágoras foram queimadas em 411 a.C, em Atenas. No ano de 213 a.C, o imperador chinês Chi Huang-Ti tentou acabar com a leitura queimando todos os livros de seu reino. Em 168 a.C, a biblioteca judaica de Jerusalém foi deliberadamente destruída durante o levante dos macabeus. No primeiro século da era cristã, Augusto exilou os poetas Cornélio Galo e Ovídio e baniu suas obras. O imperador Calígula mandou queimar todos os livros de Homero, Virgílio e Lívio (mas seu decreto não foi cumprido). Em 303, Diocleciano condenou todos os livros cristãos à fogueira. (MANGEL, 1997. p. 315)

Mas, ainda assim, há resistência. ainda que tenhamos perdido muitos registros históricos diante dessas posturas destrutivas, temos acesso a partes que “sobreviveram”. E por meio delas, nos adaptamos.

Ao ver aquela família em práticas cotidianas do ambiente pré-invasão, essa adequação é confirmada. A comida é servida à mesa, onde todos estão presentes, fazem suas preces e jantam juntos. A troca de “pratos”, olhares e toques funcionam tanto quanto um diálogo verbal. A maneira como cada um direciona ao outro o olhar – ou o não olhar – demonstra quais são os pontos frágeis e fortes naquele grupo.

um lugar silencioso john krasinski

A dificuldade em ouvir

As ações praticadas pelas personagens de “Um Lugar Silencioso” são semelhantes à interação entre pessoas, ao diálogo. Na relação entre interlocutores, no ciclo de troca de uma conversa. Há sempre o momento em que alguém é o dominante do argumento. No filme, em sua maior parte, esse domínio é da criatura. Enquanto os sobreviventes fogem ou a atacam, há a afirmação do poder do ser, já que essas estratégias não produzem efeitos que a fragilizam.

Porém, sem perceber, uma das personagens tem consigo algo tão intenso que desestabiliza o oponente. Ao se aproximar da criatura portando um objeto artificial que representa uma forte relação de amor entre ela e o pai, o ser enfraquece. Perceber o poder daquela ferramenta e saber como utilizá-la permite uma nova perspectiva de sobrevivência e comunicação. Passa a existir um lampejo de esperança em meio àquele caos.

Assim como na ficção, a condição humana atual é a de portar ferramentas que permitem maneiras inovadoras de comunicação, mas pecar em não saber como utilizá-las. A entidade do longa metragem é caracterizada como um ser cego, com uma armadura, que não suporta os sons. Podemos compará-lo a uma pessoa comum que opta por adquirir informações e tomá-las como verdades únicas. Ao desejar que todos concordem com seu ponto de vista e tentar anular opiniões contrárias, as pessoas se assemelham as entidades de “Um Lugar Silencioso”É a falsa sensação de que a tecnologia fomentou o pensamento politizado.

Ter acesso a redes virtuais e a suportes que as viabilizem não torna ninguém detentor da verdade. Esses locais de interação podem virar palco para a manutenção de preconceitos, intitulados de opinião e referendados por uma ideia tola do que é democracia. As interações virtuais, à medida que se ampliaram, viabilizaram – além do acesso das pessoas a vários conteúdos – o surgimento de bestas ferozes. Como as do filme, são cegas, protegidas por sua armadura e, que só se permitem ouvir o que lhes agrada.

Ao assistir a “Um Lugar Silencioso”, devemos nos aproximar daquela família e viver com eles as angústias de medir cada passo/palavra antes de o dar/falar. Porém, devemos também pensar em como não nos tornarmos as temidas criaturas, esses seres agressivos que usam da coação e do medo para impedir a sobrevivência de quem está fora do tom que agrada aos seus ouvidos.

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