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Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e as Relíquias da Morte

Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e as Relíquias da Morte

Gustavo Pereira - 27 de outubro de 2016

Este não é o maior livro da série, mas é certamente o mais complexo para resenhar, principalmente pela exorbitante quantidade de sutilezas ao longo de suas 551 páginas. A começar pelo título: “as Relíquias da morte” é um esforço louvável para adaptar “the Deathly Hallows”, mas falha em dar a plenitude de sentido que carrega o original. O Dicionário Cambridge define “hallow” como um verbo que significa simultaneamente “dar grande importância a algo, frequentemente pela sua antiguidade” e “transformar algo em sagrado”; pensado como substantivo, “hallow” é um objeto/ideia digno de respeito e admiração. Uma reverência ou, como penso ser mais adequado, uma mesura.

Tenho plena consciência que “Harry Potter e as Mesuras da Morte” não teria o mesmo impacto editorial, mas compreendam que esta sutileza léxica dá o tom e fecha o ciclo iniciado em Pedra Filosofal. “Mesura” pode ser tanto reverência quanto deboche (da Morte que é uma entidade e não apenas um conceito no Conto dos Três Irmãos).

Essa ambiguidade se mantém na epígrafe (Relíquias da Morte é o único volume a contar com uma, não por acaso), que aborda a temática por pontos de vista aparentemente conflitantes, mas que são de fato complementares. As Coéferas, segunda peça da trilogia Oresteia, na qual Ésquilo narra a vingança que Orestes se vê obrigado por uma maldição a pôr em prática contra os assassinos de seu pai, mas que só encontra a verdadeira justiça e a vitória quando consegue fazê-lo por um “bem maior” (falarei de mais essa dualidade ao longo do texto). Percebam o quanto Orestes e Harry possuem paralelos em suas jornadas.

Já a passagem de William Penn relativiza a morte, pois questiona a própria ideia do que é morrer. Esta passagem encontra eco nos epitáfios dos Potter e de Ariana Dumbledore que Harry visita no cemitério de Godric’s Hollow, passagens bíblicas que tratam da vida pós-morte e do valor que damos a nós mesmos de acordo com as ambições que alimentamos. A epígrafe dá uma grande pista sobre o cerne da saga: a justiça anda de mãos dadas com o desprendimento e o altruísmo.

Harry Potter e as Relíquias da Morte

“Ora, o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte”

(Essa compreensão me foi EXTREMAMENTE facilitada pela leitura de dois artigos longos, pouco convidativos e em inglês, mas realmente recomendáveis. Você deixa-los aqui e aqui.)

Falando finalmente do livro, descobrimos que o plano de Voldemort para tomar o poder no mundo bruxo se baseia em medo, desconfiança e doutrinação ideológica. Por isso a tomada do Ministério da Magia não se dá abertamente, mas por meio de um fantoche, Harry se torna “Indesejável Número Um” e a educação em Hogwarts passa a ser obrigatória: as pessoas não precisam saber que Voldemort está controlando o Ministério, a dúvida basta para mantê-las na linha; desacreditar Potter desarticula qualquer tentativa de criação de um foco de resistência; e uma Hogwarts controlada por Comensais da Morte garantirá que as gerações futuras aceitem a ideologia do novo regime como verdades naturais.

Agora que Dumbledore morreu, você, O-Menino-Que-Sobreviveu, certamente seria o símbolo e o núcleo de qualquer resistência contra Voldemort. Mas, ao sugerir que você participou na morte do velho herói, ele não só pôs a sua cabeça a prêmio como também semeou a dúvida e o medo entre aqueles que o teriam defendido.

Lupin. O suborno

Mais do que nunca, Rowling abraçou a Alemanha para embasar sua narrativa. A Comissão de Registro dos Nascidos Trouxas usa o mesmo princípio para classificar um bruxo usado pelos recenseadores nazistas: a árvore genealógica. Não basta a um bruxo nascido trouxa manifestar poderes mágicos, ele precisa ter um parente próximo comprovadamente de “sangue puro”; da mesma forma, os alemães consideravam judeu qualquer um com 3 a 4 avós judeus, mesmo que jamais tivesse professado a fé judaica; bruxos pró-direitos dos trouxas foram fichados como “traidores de sangue” da mesma forma que relacionamentos entre alemães e judeus virou a infração passível de cadeia chamada “infâmia racial”; “Magia é poder”, slogan do Ministério de Voldemort, é uma alegoria ao arianismo de Hitler.

Harry Potter e as Relíquias da Morte

“Sangues ruins e os perigos que oferecem a uma sociedade pacífica de sangues puros”, propaganda do Ministério da Magia, e “Ele (judeu) é o responsável pelas guerras”, propaganda do Terceiro Reich

O mais assustador nesta nova ordem é que ela encontrou adeptos genuínos. Tal como na Alemanha, muitos bruxos acolheram o conceito da superioridade racial de bom grado, o melhor exemplo sendo Dolores Umbridge, a vilã “mais crível desde Hannibal Lecter” segundo Stephen King. Uma mulher preconceituosa e maligna, que viu no regime de Voldemort a oportunidade para extravasar todo o seu preconceito livremente. Ela não precisou ser dominada por uma Maldição Imperius para fazer o que fez. Essa frouxidão a respeito da intolerância sempre foi a grande desgraça da comunidade bruxa, semente vital para que Voldemort pudesse voltar ao poder. Como escrevi ao longo dos últimos dois meses, Harry Potter é memorável não no fantástico, mas no real, naquilo que vemos acontecer cotidianamente.

Da mesma forma que Hitler agradou à quase-totalidade dos alemães, Voldemort se viu frente a focos diminutos de resistência. O Observatório Potter é muito parecido com o movimento Rosa Branca para não ter se inspirado nele: estudantes informando e acalmando a população com parábolas messiânicas. Se a Rosa se inspirou no catolicismo, o Observatório usava Harry Potter, uma versão revisitada de Jesus.

O Menino-Que-Sobreviveu continua a ser um símbolo de tudo por que estamos lutando: o triunfo do bem, o poder da inocência, a necessidade de continuar resistindo.

“Rômulo”. As Relíquias da Morte

Harry também abriu mão do amor de sua vida

É natural, portanto, que os protagonistas da saga fiquem a maior parte do livro numa brincadeira de gato-e-rato na qual são os ratos. Seria inverossímil se Harry, Rony e Hermione fossem para Hogwarts ou se unissem a focos maiores de combate contra o regime do Ministério. Eles são menores e mais fracos do que a nova ordem, seu único trunfo é a capacidade de se esconder e o maior inimigo é a ânsia por agir. Os ápices narrativos são intercalados em uma história propositalmente arrastada, onde sobreviver mais um dia é, ao mesmo tempo, motivo para comemoração e desalento. Quanto se pode aguentar sem fazer nada de objetivo contra uma sociedade opressora?

Leitores questionam o abandono de Rony, mas ele faz sentido no contexto da obra: dos três companheiros, Rony era o único que não havia feito um verdadeiro sacrifício edificante, que não “pagou tributo” antes de começar a jornada: a família podia ser uma traidora de sangue e estar monitorada pelo Ministério, mas ao menos estava junta. Harry era um homem marcado para morrer que perdera a família antes de entender o motivo e Hermione abriu mão da sua para protegê-la, um sacrifício talvez ainda maior que o de Harry por ser consciente.

Esta foi a primeira vez que constataram que uma barriga cheia gera bom humor e, uma vazia, desentendimento e tristeza. A Harry, isso não surpreendeu muito, porque chegara várias vezes à beira da inanição na casa dos Dursley. Hermione suportou razoavelmente bem as noites em que só conseguiam arranjar frutinhas e biscoitos velhos, sua paciência talvez um pouco mais curta do que o normal e seus silêncios melancólicos. Rony, no entanto, fora acostumado a três deliciosas refeições por dia, cortesia de sua mãe ou dos elfos domésticos de Hogwarts, e a fome o tornava irracional e irascível. Sempre que a falta de comida coincidia com sua vez de usar a Horcrux, ele se tornava decididamente desagradável.

A vingança do duende.

Rony precisava sofrer para entender o significado real da guerra. Dumbledore era um homem sábio o bastante para compreender isso e seu testamento fornece a cada um dos três exatamente o necessário para completar a missão. Mais uma vez, a obra de Ésquilo reverbera em Rowling: a aceitação do desígnio é o único caminho para encontrar a paz. Por isso o desiluminador para Rony, um livro para Hermione e um pomo que Harry não seria capaz de abrir até estar pronto.

Até aqui postos de lado, não posso excluir desta resenha as duas adaptações que Relíquias da Morte recebeu para o cinema. O diretor David Yates e o roteirista Steve Kloves, que haviam feito um trabalho em algum nível sofrível com A Ordem da Fênix e realmente pavoroso com O Enigma do Príncipe, conseguiram três momentos de profunda inspiração neste encerramento, criando cenas que não existem originalmente no livro, mas que compreendem perfeitamente a psique dos personagens e, me arrisco a dizer, são mais felizes que as soluções de Rowling.

Quando Rony vai embora no livro, Harry coloca Hermione na cama, vai se deitar e fica contemplando o teto da barraca onde estão acampados até adormecer. O rompimento da parceria isola os três amigos, mesmo dois deles permanecendo juntos. Yates nos brinda com um momento emblemático na saga, a igualmente amada e odiada cena da dança.

Se ela quebra momentaneamente a intenção de mostrar a barreira invisível entre Harry e Hermione provocada pela partida do amigo, também nos dá dois subtextos maravilhosos para analisar. O Children, a música de Nick Cave escolhida para a cena, é uma narrativa testemunhal do Nazismo. Um pedido de desculpas a todas as crianças que serão vítimas dos horrores do regime, graças à irresponsabilidade dos adultos em permitir que ele fosse possível. Os versos escolhidos para embalar a dança, o ápice da canção, pedem quase desesperadamente que as crianças se animem, contando uma mentira de que o “trenzinho” vai levar todos para o “Reino”, um “pedaço da imaginação” “além da melhor expectativa”, e não para os campos de concentração, onde a morte é quase certa (ouça a música completa abaixo e leia a tradução da letra aqui). Quando Harry tira Hermione para dançar, está assumindo seu papel de adulto, que fará o que for preciso para garantir a paz de espírito das crianças pelas quais ele se sente responsável. Contudo, a música é um placebo, pois não há como fingir por muito tempo que o destino do “trenzinho” não é um pesadelo acordado. Quando o sinal do rádio é cortado e a música acaba, a realidade cai sobre os dois e a falsa trégua acaba, mas Harry amadureceu dez anos no processo.

A segunda cena criada para o cinema é a morte de Dobby. Em vez de gastar seu último suspiro para falar debilmente “Harry… Potter…”, o elfo se despede deste mundo feliz por estar num lugar tão bonito entre amigos. Não se vê como um agraciado pela sorte de estar com o bruxo que lhe deu a liberdade, mas como um igual, o grande sonho de sua vida.

Mas, num deslize imperdoável, o seu funeral omite a fala mais bonita de Luna Lovegood, uma personagem que cresceu a olhos vistos nos três livros em que participou, se mostrando um poço de sabedoria e bondade:

Muito obrigada, Dobby, por me tirar daquele porão. É tão injusto que você tivesse que morrer, quando foi tão bom e corajoso. Eu sempre me lembrarei do que fez por nós. Espero que você agora esteja feliz.

Luna. O fabricante de varinhas

“Se houvesse um bruxo em que fosse possível crer que não visa a um lucro pessoal, este seria você, Harry Potter. Duendes e elfos não estão acostumados à proteção ou ao respeito que você demonstrou esta noite.”

Finalmente, outra morte merece destaque pela sutil alteração no cinema: a de Severo Snape, uma passagem realmente dolorosa nos livros, mesmo ele sendo um dos personagens mais odiados de toda a série. O homem entregue covardemente por Voldemort para ser atacado pela cobra Nagini e depois largado para perecer inspira compaixão mesmo quando colocamos em perspectiva seu comportamento muitas vezes ignóbil. Até Harry, que queria uma oportunidade para se vingar do assassino de Dumbledore, fica chocado.

Não sabia por que estava fazendo aquilo, por que estava se aproximando do homem moribundo: não sabia o que sentia ao ver o rosto branco de Snape e os dedos tentando estancar o sangue no ferimento do pescoço. Harry tirou a Capa da Invisibilidade e olhou do alto para o homem que odiava, cujos olhos arregalados encontraram Harry ao tentar falar. Harry se curvou sobre ele; Snape agarrou a frente de suas vestes e puxou-o para perto. Um gargarejo rascante e terrível saiu da garganta do professor.

– Leve… isso… Leve… isso…

Alguma coisa além do sangue vazava de Snape. Algo prateado, nem gás, nem líquido, jorrou de sua boca, ouvidos e olhos, e Harry percebeu o que era, mas não sabia o que fazer… Um frasco materializou-se no ar e foi empurrado em suas mãos por Hermione. Harry recolheu a substância prateada com a varinha. Quando o frasco se encheu e Snape pareceu exangue, ele afrouxou o aperto nas vestes de Harry.

– Olhe… para… mim – sussurrou o bruxo.

Os olhos verdes encontraram os negros, mas em um segundo alguma coisa no fundo dos olhos de Snape pareceu sumir, deixando-os fixos, inexpressivos e vazios. A mão que segurava Harry bateu no chão e Snape não se mexeu mais.

A Varinha das Varinhas

Ao tentar ativamente estancar o sangramento de Snape, Harry reforça a decisão que tomou na barraca de ser o adulto protetor, colocando de lado as diferenças pessoais com o homem que mais odiou depois de Voldemort em seus últimos momentos. As lembranças de Snape saírem nas suas lágrimas em lugar de descoordenadamente pela boca, ouvidos e olhos, também guarda um simbolismo: estamos prestes a descobrir o quanto aquelas lembranças são amargas, carregadas de remorso, tristes. Por fim, apesar de Snape de fato pedir para olhar nos olhos de Harry antes de morrer no livro, a decisão cinematográfica dele dizer explicitamente “você tem os olhos de sua mãe” fala não para o expectador, mas para o próprio Harry. Em algum momento, o menino se lembrará de que a última visão de Snape foram os olhos não dele, mas de sua mãe, do que isso significou para ele e todas as decisões que tomou motivado pelo amor a ela. Não restarão dúvidas.

A saga Harry Potter se sustenta em quatro pilares: aceitação do diferente, estoicismo na provação, quebra de expectativa e amor abstrato. Harry encerra sua jornada quando compreende e absorve completamente estes valores. Elegantemente, JK Rowling redime dois personagens até então incompreendidos com capítulos de mesmo nome, “A história de Monstro” e “A história do Príncipe” (“Kreacher’s Tale” e “The Prince’s Tale” no original); A lápide de Ariana Dumbledore contém um pedido de desculpas do irmão, amedrontado pela possibilidade de ter causado diretamente a sua morte e usando o trauma da perda para redefinir as próprias prioridades do que lhe é importante (“Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam” dizem os versículos do Evangelho de Mateus exatamente anteriores ao “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”); Snape depositou sua fé num falso profeta e pagou com a morte do grande amor de sua vida. Tudo o que fez em seguida foi para proteger a última parte de Lílian viva, na esperança de expiar sua culpa. Quando Harry perdoa o homem que colocou Voldemort na cola da família que lhe foi tirada tão cedo, vence seus preconceitos e abraça seu destino, caminhando para a Floresta Proibida sem temores, cada vez mais resoluto. Curiosamente, outro personagem que passou pela mesma transformação foi seu primo Duda.

A história do Príncipe

A lápide dos Potter cita I Coríntios 15:26 “Ora, o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte”. Este capítulo, que fala da ressurreição de Cristo e da vida espiritual após a morte do corpo, fala no Versículo 54 “E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória”.

I Coríntios 15:44 “Semeia-se corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual”

Harry aceitou seu desígnio e enfrentou a morte sem medo ou tentativa de defesa, porque em seu âmago, sabia que a vida não terminaria quando seu corpo parasse de funcionar. O verdadeiro bem maior não é dominar para proteger os que consideramos inferiores, mas se sacrificar em nome dos que amamos. Ou, nas palavras de Dumbledore:

E o conhecimento dele permaneceu lamentavelmente incompleto, Harry! Aquilo a que Voldemort não dá valor ele não se dá sequer o trabalho de compreender. De elfos domésticos e contos infantis, amor, lealdade e inocência, Voldemort não entende nada. Nadinha. Que todos tenham um poder que supere o dele, um poder que supere o alcance da magia, é uma verdade que ele jamais compreendeu.

King’s Cross

“É uma coisa curiosa, Harry, mas talvez os que têm maior talento para o poder sejam os que nunca o buscaram. Pessoas, como você, a quem empurram a liderança e que aceitam o manto do poder porque devem, e descobrem, para sua surpresa, que lhes cai bem”

Ser o senhor da Morte, no fim, não é conquistar a imortalidade, mas perder o medo de morrer.

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