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Bingo – O Rei das Manhãs

Bingo – O Rei das Manhãs

Matheus Fiore - 22 de agosto de 2017

Baseado na história de Arlindo Barreto e de seu alter-ego, Bozo, Bingo – O Rei das Manhãsvende-se como a cinebiografia do palhaço mais popular da cultura brasileira, mas revela-se uma tragédia sobre identidade, fracasso e autoaceitação. Com as devidas adaptações por questões de direitos autorais (Bingo representa o Bozo, assim como Augusto representa Arlindo e Rede Mundial é a Globo do universo diegético do filme), a obra acompanha a trajetória de Bingo desde seu começo na TV até o declínio nas relações pessoais e problemas com drogas e alcoolismo.

Nas mãos do agora diretor Daniel Rezende (que trabalhou como editor em filmes consagrados como Cidade de Deus e A Árvore da Vida), a obra ganha um coerente tom lúdico. Auxiliado pelo diretor de fotografia Lula Carvalho, Rezende confere à obra uma estética reluzente, com flares e luzes fortes que fazem com que a película se assemelhe a um sonho. Cria-se, então, a ambientação perfeita para um longa-metragem que trata justamente de um homem em busca de seu sonho de protagonismo.

Como tem se tornado sintomático no cinema nacional, o roteiro é a parte frágil da obra. Além dos diálogos sem naturalidade, prejudica também o fato de o filme nunca investir em nenhum de seus conflitos. Quando Augusto tem o grande atrito com seu filho, por exemplo, a cena seguinte já traz a reconciliação da dupla, impedindo que a briga tenha qualquer impacto no espectador. O medo de expor situações frágeis da vida do personagem que inspirou a biografia resulta em um enfraquecimento da dramaticidade do filme.

Bem diferente do texto, a direção de Daniel Rezende não só se sobressai, como é uma das melhores do cinema brasileiro nos últimos anos. Destaca-se, por exemplo, a sutileza de trazer planos que simbolizam perfeitamente as nuances do filme, como a televisão enquadrada no centro do plano, enquanto Gabriel, o filho do protagonista, tem apenas um pequeno espaço no canto inferior, para exprimir uma situação que efetivamente ocorre justamente quando Augusto passa a ser um pai ausente. Momentos delicados como esse são uma constante em Bingo, e fazem a obra ganhar riqueza visual. A iluminação projetada sobre o retrato que se apaga pouco antes de um personagem falecer, por exemplo, é aliada ao uso de uma luz dourada que engole o personagem, como se nos dissesse, antes de sua partida, que seu tempo acabou.

Explorando a distância criada na relação entre Augusto e seu filho Gabriel, Bingo é eficiente ao criar símbolos da relação dos dois, como o beijo no nariz que perdura mesmo quando estão brigados. O mais eficiente desses símbolos é o teatro de sombras projetadas, que é uma das cenas que abre o filme, quando o ainda aspirante a palhaço brinca com seu filho antes de ir trabalhar. A brincadeira volta a se fazer presente na projeção no período em que Augusto e Gabriel não se falam, em um delicado momento que mostra Gabriel isolado dos amiguinhos de escola, que amam Bingo, brincando sozinho com suas próprias sombras num canto, o que evidencia o impacto da ausência da figura paterna na vida da criança.

Infelizmente, a tônica de Bingo é uma construção visual incrível atrapalhada por um roteiro simples e previsível. O momento da queda do protagonista é um dos mais prejudicados. Quando descobre que foi substituído, Augusto é filmado sob uma luz azul, que retrata sua tristeza, e caminha para fora do estúdio acompanhado pelo apagar das luzes, que indicam o fim de seu ciclo, e pelo movimento da câmera que simula uma queda, fechando poeticamente a tragédia do palhaço. Momentos magistrais como este, porém, não ganham o efeito necessário e sempre são sucedidos por outras cenas importantes, que geralmente aliviam uma possível culpa do protagonista por qualquer atitude errada em sua trajetória.

A fim de criar a sensação de falta de controle na vida do personagem, Bingo constantemente traz longas cenas que, posteriormente, são expostas apenas como delírios do palhaço, e que são cortadas brutalmente para os acontecimentos reais, sempre bem distantes do que o personagem tinha em mente. Cria-se, então, a melancolia da impotência de Augusto, que tanto almeja os holofotes e o sucesso, mas nunca tem liberdade para escolher seu rumo ou receber os aplausos por seu trabalho. Bingo é um “herói” solitário e sem face, e Augusto, o homem por trás da máscara, precisa justamente de companhia e reconhecimento.

A obra funciona de forma brilhante como a tragédia de um palhaço, mas o medo de mostrar as consequências das falhas do protagonista impede que seu drama atinja o espectador. Não que Bingo seja um filme medíocre – bem longe disso -, mas a sensação final é que poderíamos estar diante de algo maior. Assim como o plano que traz Augusto visto por trás das grades da janela do elevador, sugerindo sua prisão psicológica, o longa, no fim das contas, também parece ter uma obra-prima escondida e presa a um roteiro que não está à altura. Mas, ainda assim, o saldo é extremamente positivo. Ácido na medida certa, descontraído e irreverente, Bingo – O Rei das Manhãs é, até aqui, o grande lançamento do cinema nacional em 2017, e Daniel Rezende se mostra um dos mais imaginativos diretores do atual cenário brasileiro.

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