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Black Mirror 4×02 – Arkangel

Black Mirror 4×02 – Arkangel

Matheus Fiore - 29 de dezembro de 2017

Em uma sala de operação, após um parto, uma mãe se desespera ao ver os médicos levando seu bebê para um canto da sala, procedimento que aparenta ser o padrão para o parto. Com isso, Arkangel já define um traço da personalidade daquela mulher de forma sucinta: Marie é superprotetora. O episódio corta para um futuro próximo, com a mesma mãe levando sua filha, agora com alguns anos de vida, para passear no parque. Após um momento de distração, a mulher acredita ter perdido a criança, mas a encontra. Entra em cena, então, Arkangel, um sistema de proteção no qual os pais utilizam um tablet para saber o que seus filhos fazem, sentem, consomem e vêem, com direito a filtros de violência e GPS.

Dirigido por Jodie Foster, Arkangel é mais um episódio da série que dispensa mistérios: não há plot twists ou reviravoltas inesperadas. É um capítulo no qual o roteiro abordará os mais variados efeitos de uma criação autoritária e controladora, não muito diferente da que ocorre em boa parte das relações familiares na sociedade atual. Sara, a menina “cobaia” do projeto Arkangel, cresce em um mundo controlado. Seus pensamentos, olhares e atitudes são sempre guiados ou censurados por sua mãe.

É interessante perceber que, conforme imerge no tablet que dá a ela controle sobre as atitudes da filha, Marie se torna uma pessoa reclusa. Desde que acompanhamos Sara em sua segunda fase da infância, não mais vemos sua mãe a acompanhar pelas ruas se não pelas telas. Com isso, Arkangel encontra dois estudos paralelos: o distanciamento entre mãe e filha pela inexistência de experiências conjuntas – que leva à impossibilidade de amadurecimento diante da censura familiar -, e a busca por aprendizado em outros campos: se Marie não se dispõe a guiar sua filha pelo mundo, alguém o fará.

Sara, que mantém o chip do projeto Arkangel em seu corpo para sempre, vive sob o filtro de violência imposto por Marie, que a impede de ver emoções “ruins”, como tristeza e raiva, o que acaba a privando de compreender o peso de momentos importantes, como o falecimento de um ente querido. Sem a experiência na infância, Sara torna-se uma adolescente “crua”, incapacidade de analisar situações de perigo e com o impulso jovem de experimentar coisas novas, o que pode leva-la para caminhos perigosos. Com isso, a direção de Jodie Foster aproveita o fim do filtro (que é removido pela mãe no fim da infância da menina) para por o espectador no olhar de Sara: o mundo torna-se mais violento. A primeira cena da protagonista após a remoção do filtro de violência é justamente uma briga em sua escola, algo que ela nunca havia visto antes.

As cores e iluminação também ajudam a delinear a mudança de tom do episódio. Conforme a relação entre Marie e Sara vai se tornando mais tóxica, a fotografia adquire tons mais frios, que são acompanhados por uma iluminação mais artificial e até pelo figurino: as cores quentes das vestimentas do começo do episódio dão lugar à roupas frias e escuras. Essa mudança estética não acompanha apenas a relação mãe-filha, mas também o processo de descoberta de Sara, que aos poucos sai do mundo “controlado” no qual sua mãe a inseriu e passa a conhecer a realidade, bem diferente do que antes a ela era imposto.

O episódio ainda encontra espaço para sugerir, de forma muito periférica à trama, uma ideia de ciclos. Quando Marie acredita ter pedido sua filha – que representa tudo na vida da mãe -, Foster a filma com uma câmera tremida, que a circula enquanto cortes em excesso imprimem confusão mental ao momento. A mesma forma de filmar e montar se faz presente quando Sara, já em sua adolescência, acredita ter perdido algo de valor, mostrando como o desespero e os fracassos são parte da formação humana.

O grande peso do final de Arkangel é a separação: Marie e Sara trilham caminhos diferentes, e ambas com futuro incerto. Se para Marie, sua filha era a razão de sua existência, para Sara, após seus traumas, nada mais serve de chão. Ambas encerram suas trajetórias de forma que escancara o fracasso das relações familiares nos tempos modernos. Enquanto os pais que apostam no controle para moldar seus filhos – e obviamente falham, pois a bolha sempre estoura -, acreditando inclusive terem o direito e o poder de tomarem decisões que mudariam os rumos da vida, os filhos, desorientados e desacostumados, enfrentarão um mundo hostil sem o mínimo preparo.

O ponto alto de Arkangel é não criar uma tecnologia distante da realidade. Nada que o programa proporciona para uma mãe controladora está distante do que hoje existe na sociedade. Assim como na série, os pais do século XXI acreditam ser capazes (e destinados) a controlar o que seus filhos consomem, pensam, fazem e vêem. A única diferença, porém, é que Black Mirror cria uma ferramenta que não desloque esta relação familiar para um futuro distante, mas próximo e palpável. A única diferença é que, em nossa realidade, os efeitos de uma criação neurótica, doentia e superprotetora costumam não ser tão perceptíveis, surgem como doenças psicossomáticas.

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