Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Black (2005)

Black (2005)

Matheus Fiore - 20 de junho de 2017

Black certamente não é o filme do cinema indiano que o público comum espera assistir. Bem distante das produções bollywoodianas recheadas de efeitos especiais, romances e aventuras grandiosas e cenas que desafiam a lógica e a física, esta obra do diretor Sanjay Leela Bhansali até traz parte da abordagem hiperbólica clássica de seu país em algumas escolhas estéticas e atuações, mas se sobressai mesmo por pequenas sutilezas da fotografia e da direção. A trama acompanha Michelle McNally, uma menina surda e muda, que por sua condição tem enorme dificuldade de se relacionar com o mundo. Não conseguindo dominar plenamente suas funções motoras, até uma simples refeição se torna um grande empecilho em sua rotina. Entra em cena Debraj Sahai (Amitabh Bachchan), professor que se compromete a tentar ajudar Michelle a se preparar para uma vida mais independente.

Em certos aspectos, a construção do personagem do professor lembra até Leon de O Profissional, um sujeito “durão” que esconde grande sensibilidade. A identificação dele com Michelle é imediata, principalmente ao ver que a menina é tratada como um animal doméstico por seus pais, que chegam a prende-la a um sino para saberem onde ela está. Mas o grande destaque mesmo fica com a protagonista em sua adolescência, quando interpretada por Rani Mukerji. O esforço físico para dar vida à uma pessoa com tantas limitações físicas pode ser percebida desde o olhar torto às mãos trêmulas, que intensificam a sensação de insegurança que permeia a vida da menina.

A direção de Bhansali faz escolhas curiosas. A manutenção de uma lente grande angular, que imprime um efeito “fisheye” distorcendo os cantos, é precisa para retratar o ponto de vista de uma pessoa que tem enormes limitações físicas. Bhansali é feliz ao reduzir o uso de tal técnica conforme a personagem se vê mais confortável com o mundo, graças ao seu trabalho com o professor. Curiosamente, quando seu mestre surge com alzheimer, a distorção trazida pela grande angular volta a estar presente na narrativa. Tanto esta opção técnica quanto as atuações recheadas de candura do elenco protagonista criam um tom onírico e poético muito bem-vindo na obra.

Na fotografia o filme encontra o ponto forte de sua narrativa. O roteiro cria o fio condutor da história: a relação  de preto e branco, luz e sombra. A sombra representa a ignorância e a luz o conhecimento, dualidade que existe desde a filosofia grega clássica, com o mito platônico da caverna. O professor deve tirar sua aluna da escuridão da ignorância e permiti-la conhecer o mundo e adquirir conhecimento. A fotografia, então, faz uma transição interessante. Os primeiros planos do filme são predominantemente escuros, com pouquíssima iluminação, algo que aos poucos é quebrado, até que na cena em que mestre e discípulo se encontram pela última vez,o fazem justamente em um cenário totalmente branco e muito iluminado, representando o fim do ciclo deles de busca por conhecimento.

Black tem como grande mérito a simplicidade de suas escolhas e a sinceridade e humanidade de seus personagens. A forma como é capaz de mostrar como o carinho de um professor é capaz de unir o arquétipo do mestre com uma figura paterna torna a relação entre Debraj e Michelle o ponto de equilíbrio da trama. Uma relação de cumplicidade e amizade que excede todas as limitações dos personagens e é fortalecida pelo amor e pela fome por conhecimento e sobrevivência deles. Uma aula de humanidade em forma de obra de arte. Coisas que só o cinema nos proporciona.

Gustavo, 26 anos: venezuelano residente no Brasil desde 2015

Abaixo, confira uma entrevista com Gustavo Martinez, professor do projeto Abraço Cultural. Aproveitamos o tema do filme para falar um pouco sobre a relação professor-aluno no Brasil e na Venezuela.

 

PLANO ABERTO – Black abre com um cenário totalmente escurecido (representando a ignorância) e fecha com outro totalmente iluminado (representando o conhecimento). Você considera que sua relação com o ensino tenha aberto sua mente da mesma forma que a relação do professor com Michelle abre os horizontes da personagem no filme?

GUSTAVO MARTINEZ – Sim, claro que sim. O primeiro que aprendi é que posso ser um pouquinho extrovertido (rsrsrsrs), sou muito introvertido, para poder ser líder em algumas circunstancias. Alem disso, eu acho que o processo ensino aprendizagem está presente durante a vida toda, então para mim ter novas metas a cada dia, tentar fazer coisas diferentes,  ser autodidata, tentar mudar o mundo com as palavras, com as pinturas, e que podemos falar diferentes línguas, mas ao final  compartilhamos um idioma universal, o amor, com ele todo e possível.

PLANO – No filme, com o passar do tempo Michelle passa a ser a responsável por cuidar de seu professor, invertendo os papéis. Você já se viu sendo impulsionado ou aprendendo com seus alunos, como acontece no filme?

GUSTAVO – Bom, eu não acredito na velha escola do ensino onde o professor é a única fonte de conhecimento, eu não acredito nas aulas onde os estudantes têm que acreditar tudo o que o professor fala. Para mim o fato de ensinar representa uma troca entre o professor e o estudante onde ambos aprendem juntos. Sou o tipo de professor que acha melhor usar a palavra estudante que aluno. Portanto, sempre estou aprendendo de meus estudantes, um bom exemplo é que eles tentam me ajudar com meu português que não é bom ainda (rsrsrsrs). Eles me motivam a aprender o português assim como eu os motivo a aprender espanhol.

PLANO – Em uma época de tanto egoísmo e xenofobia, qual você acredita ser o papel do professor na sociedade?

GUSTAVO – Eu acho que o papel do professor é tão importante quanto o da família. Na sociedade de hoje, é importante ensinar valores através da prática, no só dentro da aula senão no dia a dia. Quando o professor ensina a um estudante a respeitar a opinião de outro, está ensinando respeito e tolerância. No caso da aprendizagem de uma língua achou que ninguém que aprenda outro idioma pode ser xenofóbico.

PLANO – Por quê você acha que a classe dos professores vem sendo tão menosprezada pelo cidadão médio e, na sua opinião, como podemos contornar a situação?

GUSTAVO – O primeiro que vem para minha mente para responder é que esse cidadão médio nunca foi para uma escola (irônico). Na América Latina o menosprezo pela classe dos professores vem por um fato econômico, isso acontece porque nossas universidades têm a concepção de que é muito fácil ser professor, o salário não é muito bom na região, além de ter sistemas educativos com muitos problemas. Eu acho que o primeiro que temos que fazer nossos mesmos é dar valor a nossa profissão. O engenheiro está orgulhoso de ser engenheiro, a médico está orgulhosa de ser médico, mas não sempre o professor está orgulhoso de sê-lo.

PLANO – Quais as principais diferenças entre a relação professor-aluno na Venezuela e no Brasil?

GUSTAVO – Ainda não conheço muito bom a relação professor-aluno no Brasil no sistema publico, porem meus colegas que é conhecido dentro da equipe pedagógica do Abraço Cultural, me faz pensar que muitos deles gostam de uma relação mais linear que hierárquica, onde o professor é um guia e não o dono do conhecimento.

Na Venezuela, infelizmente, temos um governo ditatorial que só procura doutrinar através do sistema educativo, essa situação gera que muitos professores, talvez por medo, não sejam capazes de formar estudantes com pensamento critico e de liberdade, assim sempre que o professor fala, ele tem razão. Então achou que neste momento a principal diferença é gerada por o contexto sócio politico que são muito diferentes no Brasil e na Venezuela.

PLANO – Como o filme Black te tocou, e o quanto você se identificou com o “Professor”?

GUSTAVO – Quando eu o assisti ainda estudava na faculdade, então já eu sabia a grande responsabilidade que tinha como professor. Eu acreditava que estava na obrigação de mudar meu entorno, levando esperança para meus estudantes e tentando tornar as coisas impossíveis, possíveis.

Eu me identifiquei muito com o professor e também com a Michelle. Nos meus últimos anos como professor na Venezuela me identifiquei ainda mais. Eu tento sempre dar esperança para meus estudantes, falar sobre a ideologia política a favor do Partido Socialista Unido de Venezuela, PSUV, que representa a obscuridade  para nossos estudantes e nosso povo. Eu tento levar sempre um pensamento livre, embora cada dia fique mais difícil. Depois de ter deixado a Venezuela, tenho uma relação de amizade com alguns estudantes ainda e estou muito orgulhoso quando eles falam que eu fui o melhor professor que eles tiveram.

 

Para aprender mais do que um novo idioma, mas assimilar uma nova cultura, clique aqui.

Topo ▲