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Dunkirk

Dunkirk

Gustavo Pereira - 25 de julho de 2017

A Operação Dínamo, que resultou na evacuação de mais de 330 mil soldados aliados da cidade francesa de Dunquerque (Dunkirk), representa uma dicotomia na Segunda Guerra Mundial: um dos maiores fracassos militares da História, que entregou a França de bandeja para os nazistas, foi ao mesmo tempo um verdadeiro milagre, que trouxe quase 90% das tropas de volta para casa, tornando-se um ponto de esperança para a resistência ao Eixo (o famoso discurso We Shall Fight on the Beaches de Winston Churchill foi dado após o término da Operação Dínamo, em 4 de junho de 1940).

Quando o britânico Christopher Nolan decidiu fazer um filme sobre a Operação Dínamo, pode ter considerado a eventual falta de apelo no mercado norte-americano de um filme ambientado na Segunda Guerra sem a presença dos Estados Unidos (que só tomariam parte em 1944). Tendo isso em mente ou não, Dunkirk é uma obra particular, que coloca o conflito armado no pano de fundo para trabalhar a natureza humana frente à iminência da morte. Baseados no impulso mais elementar de todos, o da sobrevivência, os protagonistas se veem lutando contra seus temores: o inimigo externo, embora presente, não é mais perigoso do que a própria consciência.

Numa abertura que ambienta perfeitamente a gravidade da situação, um grupo de soldados maltrapilhos, dentre eles Tommy (Fionn Whitehead), chega à cidade francesa de Dunkirk, completamente deserta: a falta de água, alimento e até cigarros faz a panfletagem alemã “vocês estão cercados, rendam-se para sobreviver” ainda mais assustadora. Confundidos com inimigos, são alvejados pelas tropas francesas que guardam o perímetro (momento em que a câmera elegante de Nolan dá lugar para uma filmagem na mão, trêmula e confusa). Ser identificado e ter o acesso permitido para a praia, que poderia representar um alívio, se torna uma completa desolação. Não há para onde fugir sem ajuda. Isso é representado numa alternância entre planos gerais, que mostram a vastidão de terra e a quantidade expressiva de pessoas, e primeiros planos, conotando o enclausuramento de Tommy.

Dunkirk se divide em três núcleos de ação: “o molhe” (quebra-mar de pedra que protege embarcações na aproximação da costa), “o mar” e “o céu”. Os acontecimentos do primeiro se passam em uma semana; os do segundo, em um dia; e, os do terceiro, em apenas uma hora. Cabe à montagem dar ritmo para que intervalos de tempo tão díspares façam sentido na lógica interna do filme. A trilha de Hans Zimmer, habitué nas obras de Nolan, é fundamental para ligar os acontecimentos dentro das mesmas zonas de intenção. A ação é importante, mas o que realmente torna Dunkirk instigante são os temas recorrentes.

Se Tommy é o protagonista no molhe, Dawson (Mark Rylance) assume este papel no mar, representando os civis que navegaram seus próprios barcos rumo a Dunkirk para ajudar na evacuação. Seu filho Peter (Tom Glynn-Carney) e o jovem George (Barry Keoghan) o acompanham, sem saber exatamente o que isso representa, apenas que deve ser feito. Já Farrier (Tom Hardy, numa atuação basicamente idêntica à que desempenhou em Locke) é o principal personagem do segmento “céu”, pilotando um “Spitfire” ao lado de seu companheiro na RAF – “Royal Air Force”, a Força Aérea Real Britânica – Collins (Jack Lowden). Todos eles estão numa corrida contra o relógio, principal mote do filme, tentando cumprir com seu dever, principal tema do filme.

A forma como cada personagem lida com a noção de dever é responsável pelos melhores conflitos em Dunkirk: Tommy quer salvar a vida, mas não a qualquer preço; Dawson sabe que está se arriscando, mas o risco maior está em não fazer nada; e Farrier não tem nenhuma garantia de segurança em sua missão, mas vai cumprí-la mesmo assim. Cada um deles é colocado à prova pelos outros personagens com quem interagem pelo caminho, a escolha entre fazer o “certo” ou proteger a própria vida sendo tomada de forma muito mais passional do que racional.

Situação melancólica dos soldados sitiados: paleta fria, dessaturada e escura

Nolan, que tem alguns problemas crônicos com cenas de ação (a famosa perseguição de caminhão em Batman: O Cavaleiros das Trevas apresenta erros crassos, como repetidas quebras da regra dos 180º), consegue entregar um material muito mais sólido em Dunkirk. Na sequência em que um contratorpedeiro é naufragado, o sentimento de claustrofobia é salientado por movimentos de câmera entrando e saindo da água, tendo a alternância entre luz e escuridão um papel fundamental para desorientar o espectador. Também é nos momentos “submersos” que a trilha de Zimmer, quase onipresente e sempre remetendo ao tique-taque de um relógio, faz pausas. E isso acaba tornando tais momentos ainda mais tensos, mesmo sendo Dunkirk um filme-clímax, onde a constante luta pela sobrevivência coloca os personagens em múltiplas situações-limite, marcadas por set pieces primorosos. Destaque para duas cenas de combate aéreo, o navio encalhado na praia e o naufrágio filmado da perspectiva da tripulação, criando a ilusão ótica de que o mar está inclinando, quando na verdade é a embarcação que tomba.

Os rumos tomados por Nolan (como a negligência com a importância dos franceses para garantir o perímetro limpo durante a evacuação, a relevância quase nula dos oficiais da Marinha e do Exército interpretados por Kenneth Branagh e James D’Arcy ou mesmo a ausência de batalhas de grande porte) se justificam dentro da grande história que ele quis contar, dividida em segmentos menores, unificada numa estrutura coesa em que os personagens evoluem com o andamento do filme mas, apesar das interações, estão de fato lidando consigo mesmos. Não à toa, tanto alemães quanto oficiais ingleses não são vistos pelas tropas, apenas as consequências dos bombardeios para matá-los ou da falta de iniciativa para salvá-los.

Comparações com Kubrick são infrutíferas, pois os estilos dos cineastas são incompatíveis, o nova-iorquino com muito mais ironia e acidez na sua dialética. Dunkirk é, analisado pelo que se propõe a ser, um filme de ação cativante, com um desfecho que inspira esperança e resiliência. “Continuar lutando, nunca se render”.

Um dos melhores do ano até aqui.

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