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O Mundo de Andy (1999)

O Mundo de Andy (1999)

Gustavo Pereira - 16 de novembro de 2017

Nestes tempos em que idiotas esbravejam “isso não é arte!” e “isso é que é arte!”, O Mundo de Andy parece mais do que atual. É necessário dizer, claramente, que tudo é arte. E nada o é. Porque arte – aquela que não se vende, apenas existe – não vem para agradar a ninguém, nem mesmo ao público. Ela pode passar dos limites e ser rejeitada, mas nunca censurada. Um artista incompetente cai no esquecimento, mas tolher sua liberdade de criação é como uma morte em vida.

O Mundo de Andy Jim Carrey Andy Kaufman

Como poucas obras podem se orgulhar de conseguir, O Mundo de Andy insere o espectador na mente do protagonista desde o primeiro frame

Ao começo da obra, um monólogo de Andy Kaufman (brilhantemente interpretado por Jim Carrey) fala explicitamente para que o público vá embora do cinema, pois “o filme é uma porcaria”. Tal recurso é batido, quando trivial em comédias. Mas o que o torna diferente do lugar-comum é a convicção do protagonista em manter a encenação. Quando os créditos finais do filme são exibidos na totalidade e a tela escurece por 15 segundos, quase acreditamos que o filme, de fato, terminou. Esse comprometimento com a proposta, testando os limites da audiência, é precisamente a essência de Kaufman enquanto artista. O Mundo de Andy não poderia ter um começo mais apropriado, portanto, exatamente por testar os limites do espectador pra ver se ele realmente vai acreditar que o filme acabou antes mesmo de começar.

O Mundo de Andy Kaufman Jim Carrey

O público pode achar engraçada a aparição dos créditos de encerramento do filme em seu começo e ainda mais engraçado que o filme tenha 15 segundos de tela preta. Mas e se essa tela preta durasse cinco minutos? Ou mesmo se o filme acabasse ali, sendo esta a piada? Este foi Andy Kaufman.

O diretor Miloš Forman (criador de obras-primas como AmadeusO Povo contra Larry Flint e Um Estranho no Ninho) cria uma das elipses temporais mais orgânicas do Cinema pós-Kubrick ao unir a infância e a vida adulta de Andy na canção “Oh, The Cow Goes Moo”. Numa decisão de corte e montagem, o checo implica em duas características marcantes da personalidade do protagonista ao longo de todo o filme: a convicção de Kaufman na qualidade do seu trabalho e a preservação da sua pureza infantil enquanto artista. E é exatamente aí que a atuação de Jim Carrey se mostra fundamental para a coesão do filme. Imitar à perfeição os trejeitos de Kaufman é interessante, mas seria um mero exibicionismo se não levasse a uma camada extra de significado na obra.

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O Mundo de Andy filma muitos diálogos na estrutura de plano e contra-plano: dessa forma, sempre vemos a reação desolada de Kaufman diante de um corpo sem rosto. Miloš Forman nos coloca no papel dos carrascos responsáveis pelas frustrações de Andy. É para nós, no alto de nossa ignorância, que ele está olhando. Detalhe para a imagem inferior esquerda, na qual Andy olha para os joelhos como uma criança que sabe que irritou um adulto, embora não entenda bem o porquê.

Kaufman está sempre de olhos arregalados, com os ombros duros, costas ligeiramente arqueadas, esfregando lenços de papel nas mãos após cumprimentar alguém. Isso indica um estado de inquietude e inadequação do artista para o trato com os outros. Quando repreendido por alguém, exibe uma postura infantilizada. O uso destes “tiques” por parte de Carrey reforçam a inquietude de Kaufman, um artista incapaz de fazer o que lhe era mandado. Tal incapacidade de se submeter ao moedor de carne da Indústria Cultural chega ao ponto de Kaufman, em uma apresentação na qual a plateia exigia que ele interpretasse Latka, seu personagem mais popular no programa de TV Taxi, decidir ler O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, na íntegra.

Tal evento – que não foi uma licença poética de Forman, realmente aconteceu – foi motivado pela vontade de Kaufman de irritar a audiência, mas não apenas por isso. Quando ele diz que vai oferecer “boa arte” e lê “a maior contribuição de Fitzgerald para a Literatura”, escolhe exatamente um livro sobre a dificuldade humana de abandonar o passado e olhar para frente. Aqueles que compraram ingresso e se sentiam no direito de pautar o roteiro do show não queriam ser questionados pelo novo. Apenas uma reprodução do familiar lhes bastaria.

Mesmo os trechos do livro escolhidos para ilustrar o momento no filme são de um preciosismo admirável: a abertura, por falar sobre o risco de julgar alguém pelos próprios valores morais e não entender seus objetivos, precisamente por não entender o que o motiva, e o final, por realçar a dor inevitável de quem busca um objetivo que, a cada dia, fica mais longe. Latka é o passado do qual Kaufman foge enquanto seu público o persegue.

O Mundo de Andy fala de um artista, na acepção do termo. Alguém que não está disposto a fazer concessões para se tornar palatável, que não quer causar conformismo e relaxamento. Exatamente o oposto disso: quer que o público se indigne com ele, se isso for o necessário para causar reflexão. Alguém que fez da curta vida uma obra de arte, sacrificando a própria identidade em nome da autenticidade dos personagens que criava. Que, a exemplo de Lassie (a música dos créditos “finais” é a mesma do seriado), que só queria voltar para casa, não mediu esforços para alcançar seu objetivo.

E, até o corte final, Forman demonstra respeito e reverência pelo protagonista de seu filme, deixando em aberto a possibilidade da última grande aventura de Andy ter sido uma obra de arte e que ele continue vivo. Algo que realmente não importa, pois Kaufman não precisa de um corpo físico para viver. Sua arte é a sua vida eterna.

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