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Roda Gigante

Roda Gigante

Matheus Fiore - 15 de outubro de 2017

Woody Allen sempre demonstrou interesse em analisar como o ser humano lida com questões como rotina e escapismo, tendo como inspiração um viés filosófico inspirado por Dostoievski e suas questões de culpa e castigo e por Ingmar Bergman em sua análise da relação humana com a inexorabilidade da angústia. Roda Gigante, seu novo filme, volta a tocar em tais temas, mas, como há décadas já é marca do diretor (que, nisso, é praticamente oposto a Bergman), de forma bem humorada. Acompanhamos Ginny, uma garçonete de Coney Island que mora com o filho e o marido. Conforme passa a se apaixonar pelo salva-vidas da praia local, Ginny vê a chegada da filha de seu marido interferir em suas relações com este e com o amante.

A primeira coisa que salta aos olhos é a fotografia de Vittorio Storaro. O italiano escolhe variar suas iluminações dentro do mesmo plano, permitindo que as cores retratem os sentimentos e pensamentos dos personagens. Quando Ginny comenta sobre sua trajetória, por exemplo, os momentos saudosos são iluminados com uma luz avermelhada, enquanto, quando na mesma cena, a protagonista começa a se recordar de maus momentos, a fotografia acinzenta-se. Tal escolha permite que todos os sentimentos sejam explícitos para o espectador, já que acompanhamos a narrativa sob os olhos de Mickey, o salva-vidas interpretado por Justin Timberlake.

A fotografia faz uma brincadeira curiosa: a mesma luz não tem a mesma função em todos os personagens. Se, para Ginny, o azul representa a tristeza (note como sua casa torna-se anil quando ela passa a temer perder seu amante), para Carolina, sua enteada, o azul traz esperança e felicidade (como nos encontros com Mickey). Com essa lógica visual, a obra faz uma brincadeira com a roda gigante do título: enquanto uma personagem está em alta, outra está em baixa. A disputa pela felicidade, então, permite que todo o elenco tenha suas próprias nuances e carrosséis de emoções. E, falando em carrossel, Allen faz uma brincadeira ainda mais interessante: Humpty, o marido de Ginny e “chefe” da família, ao mesmo tempo que trabalha na manutenção de um carrossel, é o responsável por manter a família unida, apaziguando as brigas entre sua esposa e enteada e buscando sempre manter o equilíbrio do lar.

O trabalho de cores faz com que Roda Gigante tenha uma variação nos cenários que é quase teatral. O lar que começa caloroso, por exemplo, torna-se neutro, até que, quando a obra aproxima-se do clímax, passa a ter uma luz azul projetada para, no final, ser praticamente engolido pelas sombras. Em todas essas variações, Allen escolhe manter poucos pontos de vista do ambiente, como se ele fosse apenas um simples cenário de uma peça, com uma câmera que mais varia por seus movimentos pela sala do que por cortes de plano e contraplano. A pouca variação faz com que a casa da protagonista pareça um ambiente pequeno, claustrofóbico, cimentando seu desejo por algo novo. O cineasta ainda consegue caricaturar seus personagens, o que facilita que, conforme adentremos na psique de cada indivíduo, conheçamos seu lado mais sombrio e verdadeiro. Diante da pressão e do medo do fracasso, o inconsciente emerge e suprime o consciente.

Infelizmente, o roteiro de Roda Gigante não faz jus à sofisticação visual. A obra é feliz ao estabelecer os conflitos de todos os personagens, mas nunca os aprofunda para que o clímax tenha maior peso – a relação entre Ginny e Carolina, por exemplo, exigia que houvesse mais conflito anterior ao terceiro ato. As soluções encontradas para que os personagens tenham seus embates no ato final também desagradam. Há muitos atalhos para conduzir a trama direto para sua resolução, o que enfraquece principalmente o personagem de Timberlake, que, por ser o observador da história, teria na função de investigador muito mais espaço para desenvolvimento narrativo do que encontra como reles expositor de sentimentos. Há de se destacar, também, o mau uso da narração em off do salva-vidas, que começa a trama nos guiando pelos núcleos e tecendo interessantes comentários que expõem os dilemas internos do Mickey, mas o recurso simplesmente desaparece da trama em certo momento.

Se textualmente a obra peca, as atuações superam todas as limitações. Kate Winslet e Jim Belushi escolhem atuações mais calcadas nos exageros, que ajudam a conferir a tônica teatral da obra e também surgem de maneira eficiente para retratar as insatisfações de seus personagens – enquanto o marido falha ao manter o equilíbrio do lar, a esposa demonstra frustração quando não consegue escapar de sua rotina. Em contraponto, as atuações de Justin Timberlake e June Temple como Mickey e Carolina surgem de maneira mais humanizada por sua jovialidade, o que se justifica se pensarmos que os personagens mais jovens acreditam estar ainda conhecendo a vida, enquanto os mais velhos demonstram pesar por já terem idade avançada.

Roda Gigante trabalha o escapismo: o salva-vidas que já viajou o mundo e encontra nos namoros e nos livros a fuga de sua ocupação; a jovem que se casou com um mafioso em busca de aventuras; a esposa com histórico de infidelidade e abandono. Todos são humanamente falhos e buscam, na fuga de suas rotinas, um rumo diferente, ao passo que, para isso, precisarão confrontar um ao outro e arriscar perder a segurança que a vida tradicional lhes proporciona. Para Allen, não é novidade tratar da insatisfação com o modelo monogâmico de vida, mas é sempre interessante ver como, mesmo pela repetição do tema, o talentoso cineasta encontra espaço para trazer novas nuances.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2017.

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