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3% – 2ª temporada

3% – 2ª temporada

Gustavo Pereira - 30 de abril de 2018

Crítica da segunda temporada de “3%”. Para ler o texto sobre o primeiro episódio da temporada, clique aqui.

O desafio autoimposto por Pedro Aguilera era ousado. Já no primeiro episódio da segunda temporada de “3%”, via-se que a primeira série brasileira produzida pela Netflix buscava reencontrar o pioneirismo perdido pelo atraso no lançamento do projeto original. A primeira temporada focava no processo de seleção dos 3% “merecedores” de entrar no Maralto, a “Terra Prometida” de um Brasil distópico onde não existem escalas entre a miséria e a opulência. Se as etapas deste processo e a dinâmica das interações tornavam a primeira temporada de “3%” numa história de personagens, esta nova leva de episódios dá uma importância aos ambientes onde a ação acontece, não apenas mantendo a relevância dos personagens já conhecidos e de suas motivações como também apresentando e desenvolvendo novas histórias, enriquecendo o “caldo cultural” da mitologia da série.

3% três por cento netflix série brasileira segunda temporada

A história da fundação do Maralto pode ser sintetizada numa reflexão: mesmo o sistema meritocrático perfeito é falho

O principal elemento facilitador para desenvolver com profundidade tantos personagens não existe nesta temporada. O Processo colocava Joana (Vaneza Oliveira), Michele (Bianca Comparato), Rafael (Rodolfo Valente) e Fernando (Michel Valente) no mesmo lugar, submetidos às mesmas condições e com um objetivo em comum. Aguilera explora a separação física destes personagens para expandir o mundo que criou, se valendo dos traços de personalidade previamente estabelecidos para dar verossimilhança às suas reações dentro dos microcosmos. E são exatamente as construções tridimensionais de personalidade que tornam a série interessante durante todo o tempo, com seu conclusão imprevisível até o momento final. A forma como Rafael reage dentro da tropa de choque do Maralto é única, da mesma forma que a relação de Joana com a Causa, por exemplo. Os personagens têm vida própria, causando empatia no espectador.

Tematicamente, “3%” mostra personagens orientados pela psicologia behaviorista e introspectiva em conflito. O primeiro grupo é produto do meio em que vive e busca uma vida melhor, se for do Continente, ou a manutenção da sua condição, se for do Maralto. O segundo sabe que, independente do lado em que está, o cenário como um todo é injusto. É o que o marxismo chama de consciência de classe. Esses olhares plurais criam na audiência a dúvida sobre qual é a “justiça” neste mundo hipotético. O grande mérito de “3%” é exatamente não ser uma série “mastigada”, com uma resposta óbvia. A condição vivida pelos habitantes do Continente é precária e muitos reprovados no Processo mereciam uma vida melhor, mas todos os habitantes do Maralto entraram lá por seus próprios esforços. Logo, tanto as reivindicações são legítimas quanto o mérito é justificado. Mas a sociedade é estragada do mesmo jeito, tornando toda a racionalização um exercício inútil.

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Olhando para um organograma de agentes da Causa, o rosto de Rafael é refletido num espaço em branco

Essa riqueza de pormenores acaba desencadeando um efeito colateral: há muito a ser contado em meio a uma história que já é, por si, intrincada. Nota-se que “3%” fala o mínimo possível para que a narrativa central seja compreendida, o que já rende muito conteúdo. Isso explica o uso viciado de flashbacks, alguns desnecessários pela obviedade (como o porquê de Rafael construir um rádio). Infelizmente, isso puxa uma reação em cadeia, onde a edição estrutural de boa parte da série é confusa, seja porque passado e presente se alternam de forma aleatória, seja porque direção de arte e figurino de diferentes tempos não têm uma separação visual clara (o arco sobre a fundação do Maralto é esteticamente idêntico ao de Michele nos dias atuais, no mesmo Maralto).

A fotografia, que trabalha bem as cores e em boa parte dos enquadramentos, investe excessivamente em planos holandeses, com a câmera ligeiramente inclinada, gerando um enquadramento “diagonal”. Por mais que a intenção de causar desconforto e tensão seja clara, acaba sendo uma escolha meramente estética em muitas ocasiões, reduzindo o impacto das vezes em que o uso é justificado.

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Momentos pontuais de tensão são criados e não recompensam com as consequências esperadas, mas essa não é a constante de “3%”

Mas os pontos positivos de “3%” em muito superam os negativos. Se os personagens da primeira temporada evoluem e sentem as consequências dos eventos pelos quais passaram, as novas caras da série desempenham funções narrativas ao mesmo tempo em que crescem organicamente e ganham peso no desenrolar dos dez episódios. Glória (Cynthia Senek) é o rosto da juventude do Continente às vésperas do Processo 105, que nos torna apreensivos pelos rumos do plano traçado pela Causa para sabotá-lo. Elisa (Thais Lago) é a “cidadã comum” do Maralto, “inocente” pelas injustiças do sistema, que divide Rafael.

Já Marcela (Laila Garin), o maior “elemento dinâmico” da temporada, é uma personagem de “Admirável Mundo Novo” que acha fazer parte de “A Ilha” (as contrapartes futuristas do britânico Aldous Huxley). Agarrada à crença de que o Maralto é um paraíso a ser protegido não importando o custo, constrói e impõe – a si e aos demais – uma narrativa que justifique seus sacrifícios e disparates, incapaz de encarar a verdade. Seu discurso sobre a alegada superioridade do Maralto frente ao Continente remete à Susana Vieira do “Moro Bloco”, mas também a outra distopia: no famoso discurso de Morpheus a Neo, destaca-se a frase “existem pessoas tão desesperadamente dependentes da Matrix que vão lutar para protegê-la”.

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Marcela: busca do poder para proteger o Maralto e, principalmente, a ideologia que o sustenta

“3%” retoma sua merecida relevância e originalidade se valendo do clima polarizado em que o Brasil vive nos últimos anos para contar a história se um mundo polarizado por motivos diferentes mas com o mesmo potencial destrutivo. Ao longo de dez episódios, pinta um cenário complexo, dando voz aos dois lados e mostrando suas contradições. A conclusão, que tanto funciona como um fecho elegante para a história como um gancho para ir ainda mais fundo nesta mitologia, se interpretada simbolicamente, pode clarear a mente de muitos que hoje olham para a situação do país e não encontram uma solução. Pra colocar na lista da Netflix agora mesmo (todos os episódios aqui).

Leia mais sobre “3%” clicando aqui.

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