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A Morte de Stalin

A Morte de Stalin

Wallace Andrioli - 6 de junho de 2018

Sátiras a ditadores e aos regimes políticos que eles comandam são comuns no cinema desde pelo menos “O Grande Ditador” (1940), de Charles Chaplin, chegando até o exemplo mais recente de “A Entrevista (2014), de Evan Goldberg e Seth Rogen. Trata-se de uma forma de criticar esses governantes por meio da ridicularização, do exagero, o que, em geral, significa também abrir mão de discussões mais complexas sobre o funcionamento de tais regimes. Há uma grande distância nas intenções de “O Grande Ditador e, por exemplo, “A Queda (2004), de Oliver Hirschbiegel, ainda que ambos, no fim das contas, critiquem duramente Hitler e a ideologia nazista. Nesse sentido, os caminhos seguidos por Armando Iannucci em “A Morte de Stalin” não são muito diferentes dos de Chaplin e da dupla Goldberg/Rogen – e mesmo o fato de Iannucci satirizar um ditador morto há mais de 60 anos, enquanto esses outros diretores atacaram figuras vivas e empoderadas nos respectivos contextos em que realizaram seus filmes (o que demarcaria maior coragem), perde relevância quando se considera a reação indignada do atual governo russo, que cancelou a estreia de “A Morte de Stalin” no país.

O que afasta Iannucci especialmente de “A Entrevista” – ou de “Team America (2004) e “O Ditador (2012), outros exemplares do gênero que apostam no absoluto besteirol para rir do despotismo em países estranhos aos olhos ocidentais – é o rebuscamento de seu humor e a capacidade de, através dele, construir um painel brutal do poder na União Soviética de Josef Stalin (interpretado por Adrian McLoughlin). Há piadas desconfortáveis, cruéis, em “A Morte de Stalin”, mas que nunca deixam de ter como alvo os membros da cúpula do regime soviético. Beria (Simon Russell Beale, estupendo), Kruschev (Steve Buscemi), Molotov (Michael Palin), Malenkov (Jeffrey Tambor) e outros são representados como homens patéticos, bajuladores de um ditador que temem mortalmente enquanto tentam manipulá-lo, e por cujo espólio brigam feito crianças, frequentemente se expondo ao ridículo.

No entanto, Iannucci jamais reduz esses personagens a caricaturas inofensivas, atenuadas pela comédia: por mais que Beria seja o mais ameaçador e detestável deles, já que, como chefe do NKVD (órgão de segurança do Estado soviético), comandava a perseguição a supostos adversários do regime, todos os componentes do círculo íntimo de Stalin – na verdade, membros do Conselho de Comissários do Povo (CCP), responsável pelo governo de fato da União Soviética – carregam a mesma implacabilidade diante da necessidade de destruir um adversário. O que é explicitado no epílogo de “A Morte de Stalin”, quando, comandados por Kruschev e pelo general Zhukov (Jason Isaacs), eles julgam, condenam e executam sumariamente Beria.

Essa cena, aliás, é de uma brutalidade impressionante. Iannucci adota a câmera na mão para registrar a pressão exercida sobre Beria por seus adversários – na verdade, uma concretização sintética dos expurgos levados a cabo durante o governo de Stalin, que consistiam na prisão e confissão forçada de traição à pátria soviética, seguidas da consequente punição (muitas vezes a morte) – e o momento de seu assassinato, cujo caráter repentino, até anticlimático, parece causar espanto mesmo em Zhukov, um dos líderes do processo. Vale observar o olhar demolidor que o personagem lança ao soldado que executa, afoito, a ação, já que o tiro, disparado em meio à confusão da condução do condenado ao local do cumprimento da pena, poderia ter atingido o próprio general. E a continuação da cena é igualmente brutal, com a incineração imediata do cadáver de Beria concluindo a eliminação de sua presença tanto nos círculos do poder quanto na própria história oficial do país, constantemente reescrita pelo partido. Não à toa, consumado o assassinato, Kruschev diz que irá enterrá-lo na História.

Mais do que uma crítica à figura de um ditador, portanto, “A Morte de Stalin” mira no sistema político soviético. Daí o cuidado com que Iannucci referencia episódios da história do regime (a “conspiração dos médicos”, os expurgos, o acidente com o time nacional de hóquei comandado pelo filho de Stalin, em 1950, e o acobertamento do ocorrido etc.) e aspectos de seu funcionamento, ainda que, claro, exagerados, com o objetivo de compor o tom satírico do filme (é o caso da dinâmica das votações do CCP, apresentada como viciada, desprovida de qualquer debate real e criadora de falsos consensos, mantenedores do status quo partidário).

Mas, para além do ataque ao stalinismo, “A Morte de Stalin” é uma crítica feroz ao poder em si. O diretor já satirizou outros sistemas políticos em “In the Loop” (2009) e na série “Veep”. Nesse sentido, Iannucci está aqui mais próximo da iconoclastia dos filmes históricos do Monty Python (talvez a presença de Michael Palin no elenco seja um indicativo disso) e, principalmente, do humor sombrio de Stanley Kubrick em “Dr. Fantástico” (1964), que também é sobre homens patéticos dotados de enorme poder destrutivo. No fim das contas, as cenas de “A Morte de Stalin” em que lideranças da União Soviética se atracam como meninos travessos, em câmera lenta (recurso que intensifica o ridículo da situação), remetem mesmo à impagável (e assustadora) briga entre um general norte-americano e o embaixador soviético na sala de guerra da obra-prima de Kubrick.

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