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Cam

Cam

Filme versa sobre perda de identidade em um mundo que não mais separa físico e virtual

Matheus Fiore - 19 de novembro de 2018

O primeiro plano de “Cam”, longa-metragem de estreia do americano Daniel Goldhaber, é extremamente competente para ambientar a trama. Vemos um quarto que está vazio até que a protagonista salta para o centro dele e começa a exibir seu corpo. Aos poucos, há um afastamento da imagem – uma emulação do zoom-out, mas que não é um zoom-out por se tratar de uma imagem fixa da tela do computador –, que nos revela que estamos assistindo não à exibição da camgirl Alice (interpretada por Madeline Brewer), mas sim ao monitor de seu computador. A imagem de Alice é cercada pelo ranking de camgirls do site, localizado à esquerda do plano, e pelo chat interativo, à direita.

Sem o uso de nenhum corte, Goldhaber nos diz quase tudo que precisamos saber sobre a personagem e sobre o filme. Trata-se de uma narrativa focada na farsa da imagem na internet e nas consequências do surgimento desse terreno cinza que apaga a linha divisória entre físico e virtual. Observamos não Alice, mas Lola, a personagem que ela constrói para se exibir e lucrar na rede. Além disso, o fato de haver um ranking à sua esquerda e um chat à sua direita também dizem muito sobre o mundo da protagonista. Sua vida gira em torno da aceitação, da admiração e do reconhecimento dos que a observam.

Como dito, porém, esse plano inicial, que dura pouco mais de um minuto, diz muito sobre o filme, mas não tudo. O segundo é ainda mais poderoso. Um contra-plongée revela a câmera que capta o show de Alice. Vista de baixo, a ferramenta torna-se imponente, mesmo que silenciosa e inanimada. A forma respeitosa e até servil com que Goldhaber filma o objeto mostra como, no filme, a tecnologia pode não ser algo exposto no primeiro plano, mas está por trás de todos os acontecimentos da trajetória de Alice.

O filme tem seu ponto de virada quando a protagonista perde acesso à sua conta no site onde se exibe. Aliás, pior do que isso, ela descobre que sua conta foi tomada por uma réplica de sua pessoa. Uma Alice idêntica que faz os mesmos shows. Toda a sequência de “Cam” consiste em Alice tentando compreender o que aconteceu e fazendo de tudo para recuperar sua conta – afinal, o exibicionismo online é mais do que um hobby, é sua única fonte de renda.

Tecnicamente, “Cam” utiliza algumas escolhas visuais um tanto quanto clichês, mas que aqui fazem sentido para construir o universo diegético. Quando assistimos a uma cena de Alice nas ruas, com sua família, ou em qualquer cenário desconectado de seu ofício virtual, a fotografia e a direção de arte apostam na sobriedade trazida por uma luz natural e cores pouco chamativas. Já quando a trama vai ao mundo virtual, a câmera parece ser mais ativa em seus movimentos, além de haver um excesso de cores – principalmente o vermelho e o roxo – que estabelecem essa diferença entre as duas “realidades” nas quais a personagem principal transita.

Quando Goldhaber nos mostra as ações de sua protagonista no celular, “Cam” acaba ingressando no desktop horror, projetando diretamente as imagens das telas do filme. Com isso, a narrativa torna turva a separação entre real e virtual, algo coerente com a proposta do roteiro – que, diga-se de passagem, Goldhaber é co-autor ao lado de Isa Mazzei e Isabelle Link-Levy – de desenvolver uma história sobre uma mulher que tem sua identidade virtual roubada.

Essa confusão entre físico e virtual acaba fortalecida pelo dilema da protagonista, que é uma figura real correndo atrás do resgate de sua identidade virtual. Mesmo que não transforme nenhum dos acontecimentos em discussões verbalizadas, é nítido que Goldhaber tece, aqui, comentários sobre essa fronteira invisível que a sociedade contemporânea ainda busca entender.

Profissionalmente, o grande objetivo de Alice é chegar ao top50 do site de camgirls onde trabalha. Quando isso ocorre, é fascinante observar como a comemoração da protagonista dura menos de um minuto, já que ela imediatamente despenca para o 59º lugar. “Cam”, portanto, consegue também versar sobre a efemeridade desse mundo virtual, onde personalidades têm ascensões meteóricas, mas desaparecem com a mesma velocidade. É sobre esse desaparecimento que “Cam” tanto fala, sobre o processo extremo de digitalização de uma personalidade, que resulta na sua desumanização. Não é à toa que o título omite a palavra humana do ofício “camgirl”.

A conclusão de Goldhaber é que, nesse duelo entre físico e virtual, os algoritmos e as máquinas vencerão e substituirão nossa existência. Não deixa de ser irônico, então, percebermos como Goldhaber enxerga a webcam de “Cam” assim como Kubrick enxergava o computador HAL-9000 em “2001: Uma Odisséia no Espaço”, mesmo que os filmes não tenham aparentemente nada em comum. Ambas as máquinas são figuras opressoras, metafóricas e subjugadoras para a humanidade.

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