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Corpo e Alma

Corpo e Alma

Yasmine Evaristo - 2 de março de 2018

Em “Corpo e Alma”, filme da diretora  Ildikó Enyedi, o distanciamento entre as pessoas – na contemporaneidade – é discutido. Ela constrói uma fábula para abordar as dificuldades enfrentadas por quem se isola e, como isso, afeta a construção dos relacionamentos.

Corpo e Alma

O vento bate nas folhas dos pinheiros. É palpável o frescor que emana dessa cena. Um casal de cervos sai da mata e caminha por ela. A sensação é de liberdade. Ele não se conhecem, mas em breve firmarão um pacto. Seus passos, olhares e, postura, ao aproximarem um do outro são como um diálogo. Ele se aproxima, ela permite. Se tocam. O acordo está feito, um zelará pelo outro.

Em um outro universo, uma nova mulher chega ao abatedouro. Recém contratada, ela fará parte do corpo de funcionários. O proprietário, ao se distrair em uma conversa, a observa da janela. Sua postura é tímida e ele percebe isso a cada olhar dedicado a essa misteriosa figura. Sua preocupação com ela, ao perceber sua timidez, também é parte de um pacto. O mesmo na verdade, pois ali ele também escolhe zelar por ela.

Estes humanos são animais solitários, frios como a neve que cai no inverno do universo dos cervos.  Endre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély) são pessoas que vivem isoladas em suas particularidades. A semi paralisia dele e a dificuldade em sociabilizar dela, são suas barreiras e, cada um escolheu levar a vida daquela maneira. O ambiente de trabalho evidencia esse retraimento.

Corpo e Alma Géza Morcsányi Alexandra Borbély

A diretora opta por usar o ambiente de trabalho deles como meio de reforçar o clima de frieza entre as pessoas. Sem medo de demonstrar a falta de empatia, ela abusa do foco em cima das ações dos que abatem o gado. Ela explana, passo-a-passo, o abate. Cerca de dois minutos do processo de morte e retalhamento de uma vaca, do preparo de sua carne para o consumo. A evidência do resto de vida, não são os funcionários, mas o vermelho vibrante do sangue, na superfície branca, iluminada pelas lâmpadas artificiais gélidas.

O que resta é involuntário: os gestos do entalhe da faca no couro, os ganchos que suspendem o animal morto, o deslizar da carcaça pelo frigorífico. Não é necessária a repetição dessa cena no decorrer da trama, pois entendemos que esses fatos são rotineiros e reproduzidos inúmeras vezes. São naturalizados naquele ambiente. Ali ela fala sobre empatia, sobre mecanização. As situações cotidianas são tão “comuns”, que atos simples, como a empatia, são esquecidos. O “eu” se sobressai ao “nós”, a solidão entranha, e o traquejo é perdido. Dizemos o que não fazemos, pois apenas precisamos de aceitação. Não importa o interagir, apenas ser ouvido. O contato se perdeu há tanto tempo que, se há a oportunidade de estar com alguém, vence quem conseguir falar.

ambiente exageradamente claro, marcado por uma única cor quente, o vermelho do sangue do abate.

Enquanto isso, Endre observa, diz com o olhar, tenta uma sutil proximidade. Mária idem, mas se mantém distante. Aproximação não é algo que ela domine. Novamente o hábito, aparece, desta vez na hora do almoço. É necessário o sonho, no qual eles partilhem algo. O sonho permite-os caçar, comer, beber, ou apenas estar. Mas o isolamento atinge esse outro mundo, e consumar o sonho funciona enquanto a distância é presente.  A perspectiva da proximidade física gera um distúrbio na força que existe entre eles com a tentativa de ultrapassar os limites da zona de conforto. Atos como ensaiar um diálogo trazem uma ideia de segurança, que não é realmente eliminada.

Os corpos carecem do toque, algo tão orgânico que pode provocar o desmoronamento das redomas de vidro nas quais se escondem. Como lidar com isso? Como executar tal ação sem consequências emocionais maiores que o turbilhão de emoções que cada um carrega em si? Por isso ensaiar. Por isso se iludir contactando físico-emocionalmente quem não te provoca os sentidos. E com isso, persistir no outro mundo, que permite que seu eu-animal, despido de idealizações, corra livre. A liberdade do sonho permite que, mesmo diante dos receios carregados da realidade o correr riscos seja confortável.

Se relacionar é algo complexo não apenas com terceiros, mas consigo também. Essa dificuldade não permite que nos vinculemos uns aos outros. Como, se não sabermos como podemos nos conectar a nós mesmos? É uma fábula sócio-espiritual sobre religare. O eu, a essência, o todo. É a simplicidade do sorriso espontâneo, do sol tocando um pedaço da sua pele e da brisa que move o topo das árvores.

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