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HEX

HEX

Gustavo Pereira - 5 de julho de 2018

O Terror é um dos maiores testes às capacidade de um escritor. Quando lemos as notícias, vemos o país-símbolo do mundo ocidental prendendo crianças dentro de gaiolas e o país-sede da Copa do Mundo considerando violência doméstica como um simples “conflito de família“. O que “HEX” tem para competir com isso? Como um livro pode ser, no mínimo, tão assustador quanto o mundo real?

Tais questionamentos são válidos e a resposta está na própria história do Terror na Literatura. Clássicos como “Frankenstein”, “Drácula” e “O Chamado de Cthulhu”, passando por textos mais recentes, como “Carrie” e “Eu Sou a Lenda”, ficaram marcados pelos elementos fantásticos. Mas um olhar criterioso evidencia que estes, como qualquer bom livro, têm sua força nas pessoas. Mais que os monstros, são elas – e as atitudes que tomam diante de situações extremas – que amedrontam.

Com uma educação formal em Letras e Literatura Americana, o holandês Thomas Olde Heuvelt demonstra em “HEX” estar ciente disso, organizando seu livro numa estrutura clássica. O vilarejo de Black Spring é uma comunidade aparentemente como todas as outras. Os habitantes também parecem viver de forma trivial: o primeiro apresentado ao leitor é Steve Grant, um professor que testemunha o quase-atropelamento de Katherine Van Wyler enquanto caminha para casa. Esta “vítima” é a protagonista de “HEX”.

HEX Thomas Olde Heuvelt DarkSide Books

Existe um sem-número de ironias nesta cena. Apresentada numa posição de impotência, Katherine detém, na verdade, controle sobre cada aspecto da vida dos habitantes de Black Spring. Steve, que adota uma postura de observador heterodiegético, é um dos agentes mais dinamizadores da trama. Sobre os transeuntes, apesar do aparente desdém pela mulher, eles não poderiam estar mais interessados em tudo o que acontece com ela. Isso se dá porque Katherine é, como “HEX” conta algumas páginas à frente, a Bruxa de Black Rock, que amaldiçoa o vilarejo há mais de três séculos e coloca seus habitantes em uma prisão sem grades (algo que lembra demais o conto “Entre as Paredes de Eryx”, de H.P. Lovecraft).

Dando voz para um personagem diferente a cada capítulo (estilo que ficou famoso neste século pelas “Crônicas de Gelo e Fogo” de George R.R. Martin), Heuvelt estabelece de forma sólida as regras de seu mundo: brutalmente condenada à morte na fogueira por bruxaria, desde então Katherine vaga a esmo por Black Spring, acorrentada nos pés e nas mãos, com olhos e boca costurados. Aos habitantes, não são permitidos mais do que alguns dias fora dos limites da cidade, antes que um ímpeto suicida irresistível se apodere de suas mentes. Dentro da cidade, deixando a bruxa “em paz”, a vida é praticamente igual à de qualquer vilarejo. Para preservar a ordem interna e evitar ao máximo a influência externa em seus problemas, Black Spring tem o HEX, órgão de inteligência responsável por monitorar os passos da Bruxa, ocultá-la dos “forasteiros” e impedir que a cidade ganhe novos habitantes. O HEX responde ao Conselho, que muito lembra o Congresso brasileiro: majoritariamente conservador, demagogo e hipócrita.

HEX Thomas Olde Heuvelt DarkSide Books

“HEX” tem soluções criativas para incorporar a tecnologia numa história de bruxa, sem que isso tome o protagonismo do livro. Os habitantes de Black Spring seguem os passos de Katherine pelo HEXapp, uma ferramenta que eles mesmos atualizam, praticamente a mesma premissa do brasileiríssimo “Onde Tem Tiroteio“. Para evitar que indícios da existência de uma bruxa cheguem ao mundo exterior, a internet é controlada e toda a comunicação feita com dispositivos digitais – incluindo celulares – é fiscalizada pelo centro de controle HEX. Isso abre brecha para a discussão nada sobrenatural a respeito do controle do acesso à informação em regimes de exceção e do efeito das famigeradas “fake news” dentro da própria sociedade que as propaga. A ilusão do controle sobre a situação e o medo de que algo desperte a ira da Bruxa moldam a personalidade do vilarejo de Black Spring num grau mais profundo do que se pode imaginar.

A frágil ordem conquistada pelo controle sobre o coletivo tem suas contradições expostas nas relações individuais dos habitantes de Black Spring com Katherine. Além de Steve e sua família (a esposa Jocelyn e os filhos Tyler e Matt), “HEX” usa Robert Grim, chefe do Centro de Controle e Griselda Holst, uma viúva com um passado traumático, para mostrar que, na privacidade da consciência, a Bruxa de Black Rock provoca sentimentos e simbolismos variados a cada um. Com uma estrutura social de equilíbrio tão frágil, é uma questão de tempo para que algo crie uma desordem e provoque consequências. E, com personagens bem trabalhados, de motivações claramente definidas, a forma como cada um interage com – ou provoca – essas consequências é mais do que factível: é o ponto alto do livro.

“HEX” se vale de uma ameaça sobrenatural real para questionar o lado mais assustador da personalidade humana, capaz de atos brutais em nome do amor, do medo ou da pura bestialidade. Katherine, centro de um universo em que todos os demais reagem a ela, tem o controle de Black Spring e catalisa todas as mudanças na trama apenas por existir. Seus poderes são imensuráveis mas, paradoxalmente, o livro se torna menos interessante quando eles aparecem. São os “cidadãos de bem” que realmente metem medo. A escalada de loucura chega a uma conclusão apoteótica. E o final, perturbador como um bom Stephen King, fica dias na cabeça do leitor.

Não provoque a bruxa.

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