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O Mecanismo – 1ª temporada

O Mecanismo – 1ª temporada

Gustavo Pereira - 24 de março de 2018

Crítica da primeira temporada de “O Mecanismo”. Para ler sobre o episódio-piloto, clique aqui.

De todas as críticas que “O Mecanismo” possa receber, ao menos uma delas é improcedente e, portanto, injusta: nessa revoada de produções com viés político, a série da Netflix criada por José Padilha e Elena Soarez não escolhe um lado e se finge de “isentona”. A produção vê a política como um organismo homogeneamente corrupto e nocivo, sem distinções ideológicas entre direita e esquerda. Exatamente por isso, chega a ser inocente em sua ingenuidade.

O Mecanismo José Padilha Lava Jato Selton Mello

“E no final das contas, era tudo uma loucura.”

Marco Ruffo (Selton Mello), de certa forma o “herói” de “O Mecanismo”, é praticamente uma cópia do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite”. Às características mencionadas na crítica do episódio-piloto, somam-se a truculência na forma de investigar os esquemas de corrupção na Petrobrasil (um paralelo óbvio à Petrobrás) e a péssima relação familiar. O verniz quixotesco não esconde que Ruffo é um Capitão Ahab, cuja motivação primordial não é a justiça, mas a vingança contra seu colega de escola (!) Roberto Ibrahim (Enrique Diaz), o equivalente da série ao doleiro Alberto Youssef.

Esse dilema entre os fatos históricos, a fórmula narrativa de Padilha e as próprias convicções do carioca leva “O Mecanismo” por caminhos tortuosos. A Polícia “Federativa” é retratada como uma colcha de retalhos: os policiais se dividem entre corruptos e psicóticos. Contudo, o “inimigo” a ser combatido é tão vil que merece tais expedientes. Durante uma reunião em que negocia um superfaturamento bilionário numa obra pública, um plano-detalhe mostra Ibrahim roubando balinhas de café de um pote na sala de reuniões da empreiteira “Miller & Bretch” (preciso dizer que ela foi inspirada na Odebrecht?). Um homem que rouba até balinhas de café não merece os benefícios da Justiça. Para prender tamanho escroque, vale tudo.

Contudo, quando se pensa no que o doleiro Youssef fez (operacionalizou um esquema bilionário de lavagem de dinheiro público), tal recurso se mostra desnecessário. Esse exagero dramático empregado em “O Mecanismo” não humaniza a investigação, faz exatamente o oposto: doidos varridos perseguindo ladrões de galinha. A série vira uma caricatura.

O Mecanismo José Padilha Lava Jato Selton Mello

Apesar da construção simplista, a atuação de Enrique Diaz é tão poderosa que faz de Ibrahim o personagem mais forte da série.

O roteiro é um ponto à parte na análise e dele se explica a maioria dos problemas da série. Além dessa carga artificial, a história só avança porque, sistematicamente, os “gênios do crime” cometem erros pedestres que entregam de bandeja o serviço para os policiais. Não importa o quão verídicos sejam os deslizes identificados pela Lava Jato real: condensados em oito episódios, a quadrilha que saqueou sistematicamente os cofres públicos parece um bando de amadores trapaceando numa partida de dominó. A conta não fecha: gênio do crime ou idiota. Os dois, não dá pra ser.

O Mecanismo José Padilha Lava Jato Selton Mello

Os criminosos que Verena traz à Justiça são um efeito colateral da sua busca por vingança às desventuras de Ruffo

A forma como Ruffo resolve enigmas insolúveis e repetidamente encontra respostas para becos sem saída da investigação também torna o protagonista numa mistura de Sherlock Holmes com MacGyver, capaz de fazer numa garagem o que polícia e Ministério Público, juntos, não conseguem. A prova que o problema é estrutural e não ideológico vem pela isonomia com que as caricaturas escritas por Soarez aparecem: Ruffo é uma mente brilhante e perturbada em dimensões acima do aceitável, mas os bandidos que ele combate também são patéticos, como na cena em que a quadrilha comemora dançando ridiculamente em suas celas aos gritos de “o processo vai pro Supremo”. Na série, ao tirar a profundidade dos conflitos internos que qualquer pessoa tem numa situação como essa (seja um policial investigando poderosos e sofrendo as consequências ou corruptos que se acham impunes indo pra cadeia), os personagens perdem sua humanidade.

“O Mecanismo” passa a mensagem de que o Brasil se resume a bandidos, ególatras e imbecis ao sabor do acaso, mas tem os seus protegidos. Enquanto os agentes corruptores são o mal encarnado, as ilegalidades cometidas tanto por Ruffo quanto por sua “discípula” Verena (Caroline Abras) são tratadas como tacadas de mestre. O juiz Paulo Rigo (versão de Sérgio Moro interpretada por Otto Jr.), por mais que seja vaidoso a ponto de mudar a assinatura nas ordens de prisão para deixar seu nome legível, é sempre representado como um homem de família, lutando contra forças maiores do que ele e sendo guiado por alguma espécie de entidade superior.

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Quando Rigo está na cama lendo um gibi do “Vigilante Sombrio” (uma versão genérica do Batman), a série passa o recibo. Todos os problemas do país estão em Brasília e qualquer – qualquer! – meio para expurgar a capital federal compensa.

O que torna uma decisão estilística incoerente: nenhuma operação policial é registrada pela ótica dos agentes. Ao mostrar como os acusados reagem às ordens de prisão, busca e apreensão, “O Mecanismo” acaba por, involuntariamente, vilanizar os agentes da lei que tanto enobrece! Disso, podemos supor duas respostas: um erro grosseiro ou um senso enviesado de revanchismo, pois temos acesso à “dor em primeira pessoa” de crápulas tendo “o que merecem”.

A segunda opção é a mais provável. Nada em “O Mecanismo” foge do senso comum de quem se informou sobre a Lava Jato pela imprensa e diz em mesa de botequim que “político é tudo ladrão”. Não à toa, uma frase notória de Romero Jucá, “tem que estancar essa sangria“, dita para justificar a manobra que retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder para frear os avanços da Lava Jato, é creditada a João Higino (o “Lula” de Arthur Kohl) se referindo a um grande acordo para manter a presidenta Janete Ruscov no poder e frear a Lava Jato. Displicência ou desonestidade?

Peter Drucker, consultor administrativo austríaco, disse certa vez que “para alcançar o novo, é preciso parar de se fazer o velho”. Renegar a política, jogando todos os seus agentes na vala comum da corrupção, é algo tão velho quanto a própria política. Padilha defende de forma constante em suas obras que as estruturas corruptas são indestrutíveis e não há solução para vencê-las. Tudo o que podemos fazer é aceitar esta “verdade”. Em “O Mecanismo”, conduz todo o enredo para esta revelação batida, que trata como a descoberta da pólvora.

Enquanto se mantiver fechado neste dogma, nunca expandirá sua própria percepção da realidade. E nem fará algo diferente desta sequência de autoplágios de “Tropa” em que sua carreira se tornou.

Todos os episódios de “O Mecanismo” estão disponíveis aqui.

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