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Num país que mal se livrou de Michel Temer, a premissa de “Vice” parece um chá da tarde numa quarta monótona. “Mas Dick Cheney sequer derrubou Bush” é um questionamento válido. O que o filme de Adam McKay (“O Âncora” e “A Grande Aposta”) faz é montar um quebra-cabeça de eventos para explicar como (e porque), sem romper com as estruturas institucionais em nenhum momento, Cheney (interpretado brilhantemente por Christian Bale) basicamente destruiu o status quo do mundo e redesenhou a geopolítica do século 21. E tudo isso sem ser notado. O Brasil pode não ser para amadores, mas Cheney também é um profissional de assustadora competência.
A primeira sequência de “Vice” associa o caos do 11/09 à noite em 1963 quando um então jovem Dick foi preso por dirigir embriagado em Casper, Wyoming. A ligação entre os eventos, num primeiro momento inexistente, se mostra a seguir: nas duas oportunidades, Cheney encontrou no “fundo do poço” a oportunidade perfeita para emergir triunfante. Ao longo das mais de duas horas de projeção, essa astúcia – ora senso de oportunidade, ora puro oportunismo – constrói um protagonista ao mesmo tempo capaz de faturar com a desgraça de milhares sem ao menos piscar e, ainda assim, surpreendentemente humano. Só um pouco humano, é verdade. Mas humano.
Essa humanidade aflora de forma sutil. Logo após sair da cadeia, Cheney é cobrado por Lynne Vincent (Amy Adams, também soberba) para que se torne “alguém”, ou ela o abandonará. É interessante notar como McKay a filma de baixo pra cima, deixando-a claramente em uma posição de poder sobre o então noivo. Ela é a única figura que se impõe sobre Cheney durante o filme e fica evidente que toda a jornada do futuro Vice-Presidente mais poderoso da História é o cumprimento da promessa feita naquele dia à amada. O cinematógrafo Greig Fraser ilumina Lynne frontalmente com a luz vinda da janela, deixando as feições de Dick, iluminado pelas costas, semiocultas. Naquele momento, o “homem silhueta” é forjado, a figura que exercerá um poder nunca antes visto sem aparecer sob nenhum holofote.
“Vice” funciona pela sua montagem. Hank Corwin (que reedita a parceria com McKay após “A Grande Aposta” e trabalhou com Terrence Malick em “A Árvore da Vida”) justapõe passagens da vida de Cheney antes e durante seu mandato de VP, fazendo o passado justificar o presente, ou associações livres sobre a forma que Cheney via certas situações, como os termos impostos a George W. Bush (Sam Rockwell, no melhor trabalho de sua vida) para aceitar ser seu companheiro de chapa eleitoral e a tortura em Guantánamo. Também, a exemplo de como fora feito em “A Grande Aposta”, há quebras de quarta parede, “notas de rodapé” explicando “áreas cinzentas” da legislação americana, contextos históricos e consequências diretas de feitos de Cheney ao longo de sua trajetória (que não foi curta: Chefe de Gabinete da Casa Branca, Deputado e Secretário de Defesa).
Outro triunfo de Corwin é o de unir personagens pelos seus sentimentos. Quando Bush anuncia à nação o primeiro bombardeio contra o Iraque, a câmera flagra que, por baixo da mesa do Salão Oval, o Presidente está batendo o pé nervosamente. Ao mesmo tempo que Bush fala a seus compatriotas, uma família em Bagdá se esconde embaixo de uma mesa, com o pai batendo o pé da mesma forma. Ambos são vítimas da trama do Vice-Presidente, mas a bomba que explode e mata aquela família deixa bem clara a visão de McKay sobre quem são as verdadeiras vítimas.
Essas escolhas fazem de “Vice”, em última análise, um filme shakespeariano. A referência mais direta, ainda que não tenha nenhuma citação literal, é a “Ricardo III“, o rei da Inglaterra que chegou ao poder usurpando o direito dos próprios sobrinhos. Há espaço para comédia, como o “final alternativo” do filme; drama, como o momento em que Dick precisa escolher entre poder absoluto e família; “terror naturalista” quando percebemos a dimensão do poder do protagonista e suas intenções de usá-lo. “Vice” deixa um gosto amargo na boca, pois a única pessoa que sempre soube das consequências de seus atos era o próprio Dick Cheney, alguém que não parece se importar nem um pouco com elas ou com a reação do público após finalmente ser desmascarado. E é esse desinteresse que torna a sua figura tão intrigante quanto assustadora.