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A Esposa

A Esposa

Das complexidades da opressão

Wallace Andrioli - 15 de janeiro de 2019
O texto a seguir contém spoilers leves da trama de “A Esposa”

“A Esposa” acompanha o processo de libertação de uma mulher subjugada por seu marido ao longo de décadas. Escritor bem-sucedido, laureado com o Nobel de literatura, Joseph Castleman (Jonathan Pryce) guarda o segredo, devastador para uma profissão que valoriza muito a genialidade individual, de que seus livros foram na verdade escritos por sua esposa Joan (Glenn Close). O filme de Björn Runge encontra esses personagens justamente no momento em que ela começa a se libertar dessa prisão, se reconectando com uma juventude de criatividade, tolhida justamente pelo início da vida ao lado de Joseph.

Trata-se, portanto, de uma história de fácil aceitação no tempo presente, quando avançam no espaço público movimentos de luta contra o apagamento de mulheres artistas (escritoras, cineastas etc.). No entanto, o que há de mais interessante em “A Esposa” é sua disposição para trafegar por zonas cinzentas. O que poderia ser apresentado como pura opressão do masculino sobre o feminino é matizado por nuances do relacionamento do casal, que revelam não só a existência de um afeto real e mútuo, mas mesmo de um pacto consciente, condicionado por fatores diversos. Runge e a roteirista Jane Anderson, adaptando livro homônimo de Meg Wolitzer, constroem tais nuances sem jamais ignorar a dimensão da dominação, que, claro, existe.

O filme também faz duas insinuações metalinguísticas que o tornam um pouco mais aberto a interpretações não tão literais. Na primeira, Joan conversa com Nathaniel Boone (Christian Slater), pretenso biógrafo de seu marido, e, ao ouvir dele a teoria de que ela é na verdade a autora da obra de Joseph, responde ironicamente que ele deveria escrever ficção. Curiosamente, a partir daí, “A Esposa” segue justamente o caminho da confirmação da hipótese de Boone – e o quão verossímil é o destino de Joseph, típico de melodramas rasgados? Já a segunda insinuação ocorre numa conversa na limusine entre o casal de protagonistas e seu filho, David (Max Irons), que, após ter um conto seu lido pelo pai, recebe a avaliação crítica de que a personagem feminina com uma antiga raiva represada é um clichê.

É claro que essas duas cenas podem significar apenas um comentário irônico sobre o pedantismo da “boa literatura” sendo engolido pelo componente melodramático da vida. Mas já é digna de nota a mera abertura do filme para a possibilidade de uma brincadeira entre verdade e ficção, sem que isso seja feito de forma excessivamente expositiva, como no argentino “O Cidadão Ilustre” (2016), de Gastón Duprat e Mariano Cohn.

Por fim, Runge e Anderson encerram “A Esposa” com uma postura triunfalista de Joan, que tem diante de si a liberdade tão almejada e a folha em branco que lhe permitirá enfim construir uma carreira para si. Mas há muito de aparência nesse final. Afinal, as mesmas circunstâncias que tornam a personagem livre podem infligir alguma culpa sobre ela, considerando a complexidade da relação mantida com Joseph. Além disso, é perfeitamente possível imaginar um futuro não tão luminoso para Joan como escritora. Considerando que ela pretende se manter como guardiã da memória do marido, não tornando público o segredo que guardavam (algo explicitado em seu último diálogo com Boone), a publicação de novos livros assumidamente seus, mas que inevitavelmente repetiriam em alguma medida o estilo daqueles cuja autoria foi atribuída a Joseph, provavelmente levaria a comentários críticos quanto a tentativas de emular a escrita dele. São, enfim, dessas pequenas mas significativas brechas criativas, numa história a princípio bastante convencional, que “A Esposa” tira sua maior força.

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