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A Guerra dos Sexos: os perigos de uma sociedade tolerante ao machismo

A Guerra dos Sexos: os perigos de uma sociedade tolerante ao machismo

Gustavo Pereira - 19 de outubro de 2017

Este artigo contém revelações sobre o enredo de A Guerra dos Sexos. Leia nossa crítica sem spoilers clicando aqui.

Em 1973, quando Billie Jean King conquistou a “tríplice coroa” de Wimbledon (simples, duplas e duplas mistas), era uma atleta chegando ao ápice profissional. Naquele mesmo 1973, venceu um jogo-exibição contra o aposentado Bobby Riggs, à época com 55 anos. Por mais absurdo que pareça, esta segunda vitória representou um feito maior. Não pelo desafio técnico de derrotar um oponente com quase o dobro da sua idade, mas pelo respeito que isso impôs. Numa sociedade que não respeita mulheres mas, ao contrário, tolera e, consequentemente, incentiva comportamentos machistas. Ao “passar pano” para atitudes desrespeitosas travestidas de piadas, esta sociedade encoraja pessoas comuns a gestos gratuitos de hostilidade.

Guerra dos Sexos

O que leva um homem a se exibir publicamente para o mundo como um “macho chauvinista“?

A nomenclatura “guerra dos sexos” é a forma como o tipo clássico de “macho-alfa” rotula a lista de exigências mais razoável na História da Humanidade. Ao considerar pagamentos igualitários para pessoas de mesma qualificação desempenhando o mesmo trabalho – motivo que faz Billie Jean romper com a Associação de Tenistas Profissionais e fundar a Associação de Tênis Feminino – como sendo “batalhas” numa “guerra”, estabelece a urgência não apenas de vitória, mas de aniquilação do outro lado. Não é por acaso que, hoje em dia, movimentos feministas sejam chamados jocosamente por grupos conservadores de “feminazis”. É a tática de opressão mais antiga do mundo: desumaniza-se o lado “inimigo” para justificar toda sorte de atrocidades cometidas contra ele.

Guerra dos Sexos Billie Jean King Emma Stone

Se um homem quiser fazer algo, basta fazer. Se for uma mulher, ela precisa provar aos homens que é capaz disso, apenas para ouvir que não, não é capaz.

O que torna este processo injusto é precisamente a falta de simetria. Existem inúmeras correntes dentro do feminismo – não cabe a um homem a audácia de tentar explicar as diferentes nuances entre elas – e nenhuma busca subjugar os homens, apenas elevar as mulheres. Em dado momento do excelente As Sufragistas, uma das líderes do movimento em prol do direito feminino de votar (!) é questionada sobre o porquê das depredações públicas nas manifestações. Ela responde que “esta é a linguagem dos homens, a única que vocês compreendem”. A sociedade machista transforma mulheres inconformadas com injustiças motivadas pelo gênero em inimigas, pois assim têm uma vantagem competitiva: a própria ordem social, que protege os “seus”, valida os “argumentos” e retroalimenta a opressão.

Quando Billie Jean aceita o desafio de Riggs, está assumindo que a tal “guerra dos sexos” é a única forma de ser ouvida numa sociedade bélica, violenta, masculina. Em um cenário absurdamente injusto, uma eventual derrota representaria a derrota de todo o gênero feminino no que tange a demanda por iguais condições de trabalho. Quando ela aponta, dialeticamente, não fazer sentido a premiação do torneio feminino ser dez vezes inferior à do masculino, vista a igualdade no número de partidas jogadas e de ingressos vendidos para ambos os torneios, o promotor Jack Kramer apenas diz “não vai rolar”.

Guerra dos Sexos Emma Stone Billie Jean King

Numa sociedade falocêntrica, qualquer decisão de uma mulher é para afrontar os homens ou competir com eles. A ideia de que ela esteja fazendo algo por e para si passa ao largo.

Mas por que ele resolve a questão de forma tão prosaica? Porque ele não precisa dar satisfações a uma mulher. Ele é um homem, e a sociedade lhe dá todos os benefícios numa discussão contra este ser considerado inferior. Este e o ponto alto do mediano A Guerra dos Sexos: mostrar o quanto esta tolerância ao comportamento machista cria uma escalada, permitindo que mais indivíduos extravasem seus preconceitos adormecidos. Ao ouvir um absurdo como “as mulheres não podem ganhar o mesmo que os homens porque não sabem lidar com a pressão”, o coletivo de pessoas que se diz civilizado tem duas opções. Ou rechaça imediatamente tal “lógica” ou a rotula como “opinião”. Ainda hoje, podemos ver qual a opção escolhida:

 

Quando um político umbilicalmente ligado a grupos conservadores fundamentalistas relaciona a gênese feminina a uma “fraquejada”, cristalinamente compreendida como uma falha dele, uma “performance” aquém do esperado, está rebaixando as mulheres a pessoas de segunda categoria. O homem que “fraqueja”, acaba “penalizado” com uma filha. Quando este tipo de declaração é tratada como uma piada, ela germina algo mais tenebroso: se o senso comum diz que classificar mulheres como produtos de uma “fraquejada” é uma piada aceitável, dá a este discurso uma verdade intrínseca. Um apelido, por mais cruel que seja, só “pega” quando tem paralelismo à realidade. “Coincidentemente”, mais de 40% dos brasileiros dizem concordar totalmente com a frase “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.

Guerra dos Sexos Steve Carrell Bobby Riggs

Respondendo à questão da primeira foto: um homem sai do anonimato se chamando de “macho chauvinista” porque viu um semelhante fazer o mesmo e, em vez de ser repreendido, ou mesmo ignorado, recuperou o status de estrela com um discurso completamente desprovido de significado. O êxito de um estimula os demais a voos até mais ousados.

A prova que A Guerra dos Sexos é um filme competente no que tange a sua principal mensagem – o machismo é um mal que se deve cortar pela raiz – está em Bobby Riggs. Saído do ostracismo com o discurso do “porco chauvinista”, retornou aos holofotes menosprezando as mulheres. Não passava de um fanfarrão, que precisou da enquadrada que levou de Billie Jean, na quadra, para entender o que deveria ter sido explicado pela própria sociedade: preconceitos não são argumentos, pois não fazem sentido. Mas Riggs só poderia existir numa sociedade liderada por figuras como Kramer, que trabalham ativamente para manter mulheres em posições subalternas.

Em meio a este mastodonte de responsabilidade, dizer que “mulheres não lidam bem com a pressão” beira o surreal. Mas, até hoje, encontra eco no coletivo. E não se engane: a discordância em silêncio é tão nociva quanto a aprovação urrante. Possivelmente pior, pois é dever dos esclarecidos explicar àqueles que ainda não notaram a incoerência de seus discursos o quão ridículos soam. Se uma pessoa estivesse num barco e descobrisse que ele está furado, não guardaria a informação para si. Mas, quando se trata do amigo falando que “mulher precisa se dar ao respeito”, o silêncio ainda é a opção mais cômoda, como Quentin Tarantino deixou claro.

O termo “guerra dos sexos” é injusto, pois pressupõe a existência de dois lados tentando se destruir. Na verdade, apenas um deles pensa assim, e é exatamente o mais forte, aquele que se diz vítima de uma “tentativa de destruição da sociedade”. De fato, a sociedade, tal como está, precisa ser destruída. Mas isso não resultará num apocalipse. Apenas em justiça.

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