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Juventude da Besta: A obra de Charles Burns

Juventude da Besta: A obra de Charles Burns

Os quadrinhos de horror que acompanharam as mutações do jovem americano

João Pedro Faro - 26 de julho de 2019

Desde seu surgimento até sua massificação, os subúrbios americanos constituíram o imaginário popular. Oriundos de tempos caóticos para os Estados Unidos e ainda consolidados na atualidade, esses subúrbios abrigaram basicamente toda a jornada da classe média norte-americana pelo século XX. Logo, condensam todos os anseios e desesperos de algumas gerações que cresceram nesse espaço. O quadrinista Charles Burns foi parte disso. Nascido na metade da década de 50, Burns teve sua infância nos anos 60 e sua juventude nos anos 70, criando toda a base para seu trabalho que começa fortemente nos anos 80.  

Do subúrbio de Washignton, Burns cresceu pelos filmes de terror b nas madrugadas da televisão e pelos quadrinhos pulp que colecionava. Faz parte de um grupo de autores que teve suas referências artísticas possibilitadas pelo consumo cotidiano, já inseridos na ideia de que a cultura pop era uma ferramenta de criação tão essencial para os novos artistas quanto o clássico e o erudito dos séculos passados. Antes uma edição de Tales from the Crypt do que um quadro do Renoir, ainda mais para um típico suburbano isolado da cidade grande: o costume da juventude ocupando as casas tanto para suas festas e encontros quanto para sua formação cultural em frente às telinhas. Junto a tudo isso, estava a produção de quadrinhos independentes adultos graças ao Underground Comix, de Crumb à Gilbert Shelton, em seu auge. Os pilares de Burns para a produção de seu trabalho já estavam mais do que firmes.

Burns, desde o começo, faz a sua assimilação de referências retornar para seu tema central da formação e amadurecimento do indivíduo. Depois de deixar de lado a criação de personagens baseados em consumos de criança (como a série do lutador El Boorbah), Burns torna sua própria experiência de infância uma série com o personagem autobiográfico Big Baby (1983-1999). Big Baby passa os dias criando monstros de brinquedo, lendo gibis de horror e espionando a vida dos vizinhos do subúrbio onde mora. É a cria que vai gerar o universo de todos os principais trabalhos do autor nas décadas seguintes, mas é também ele próprio assumindo sua formação baseada em produtos de fantasia direta e popular. A construção dos quadrinhos de Big Baby é também o início do experimento de Burns com a arte sequencial: existe uma rigidez muito clássica na disposição e na transição dos quadros. Os gibis que Big Baby lê, típicos desse tipo de construção visual pouco arrojada e muito direta, misturam-se constantemente com o próprio gibi de Burns, sem qualquer mudança aparente no jeito de retratar o que é o quadrinho dentro do quadrinho e o que é a própria realidade da história.

Isso acontece porque a crença nesses produtos artísticos de consumo, tanto para o personagem Big Baby quanto para Burns, é tão forte, tão real, tão enraizada em sua existência e em sua vivência, que se tornam a própria realidade de seu crescimento. Big Baby é um moleque que amadurece por seus enfrentamentos com o sobrenatural, que por sua vez são possibilitados pela sua obsessão pelo que passa na TV após sua hora de dormir e pelas páginas de quadrinhos mirabolantes que lê escondido da mãe. Sua infância pertence aos monstros do espaço e aos fantasmas de acampamento que cercam seu consumo e sua imaginação.

Acontece, a partir do seu grande trabalho seguinte, uma lógica contínua de amadurecimento: Black Hole, publicado em 12 partes entre 1995 e 2005, é a fase seguinte na vida do pesadelo suburbano dos jovens de Burns. Tudo que era descoberta ou curiosidade proibida para Big Baby torna-se realidade em Black Hole: o sexo, o corpo e os monstros. A epopeia setentista de fim de colegial sobre uma praga sexualmente transmissível que gera as mais bizarras mutações entre jovens de uma comunidade é o testamento do autor sobre o sentimento de estar vivo na adolescência. Como se as obras de Junji Ito (Uzumaki, Tomie) fossem repensadas para os quadrinhos da turma do Archie.

Reduzir Black Hole como uma série de signos decifráveis sobre DSTs e dores da juventude é menosprezar toda a construção da obra. Não existe metáfora em Black Hole, tudo é o que é por ser tão real em transpor as sensações mais constantes dessa fase da vida. Os jovens de Black Hole, tanto os mutantes quanto os não-mutantes, parecem entregues a um estado comum de completa putrefação. Claro que a localização da história em meados dos anos 70 impulsiona outras realidades: todo o sentimento de que a revolução sexual foi uma mentira, a ressaca do Vietnã, o início de uma falta de perspectiva pungente, o protopunk… Mas está universalizado e atemporal em identificar o temor do corpo juvenil em apodrecer. Nunca há um intervalo entre o sexo e a perturbação, eles estão intrínsecos, compartilham um mesmo espaço e se aproveitam um do outro em Black Hole. As meninas bonitinhas da escola transam com deformidades abomináveis e reconhecem a paixão, a dor e o prazer em criaturas abissais que habitam o fundo dos lagos. A garota dos sonhos do jovem deslocado é uma mulher de cauda, transando rodeados de obras artísticas entorno de mutilações e desmembramentos. Não há simbologia nisso, é concreto, direto em reconhecer como é extrema a ambiguidade dos desejos juvenis, e como a realização desses desejos é através de uma entrega completa à sensação de sentir-se grotesco. Como um ser preenchido por tesão e ódio contra si mesmo, sentindo-se como um verme atrás de uma transa que o afaste do vazio inevitável e da desesperança completa, poderia se sentir diferente? O corpo à mercê do horror é uma realidade inquestionável que esses jovens precisam aceitar para estarem mais próximos do mundo que habitam.

Não há canto em qualquer quadro de Black Hole que não reitere esse universo de anatomias deformes e sexo destrutivo. As salas de aula são espaços de proximidades tentadoras, os bosques se contorcem para esconder monstruosidades vivas, as casas padronizadas do subúrbio estão preenchidas por segredos de portas fechadas… Há uma repetição de signos ao longo dos 12 capítulos que sempre retornam para a ambientação do espaço que Burns desenha: fendas anatomicamente ambíguas, revistas pornô que misturam-se às imagens da realidade, seres rastejantes (desde monstros em forma de serpente que habitam os delírios dos personagens até a visão de espermatozoides aterrorizantes), todos sempre à beira de quebrar os limites das páginas.

Assim, Burns deixa a rigidez de quadrinhos anteriores para novas experimentações. Os quadros de cada página de Black Hole parecem convergir-se, vão se entrelaçando em forma e em imagens repetidas que criam todo o clima de delírio e pesadelo concretizados em um espaço reconhecível. Os quadros de sonhos são vertiginosos, as imagens do autor mudam de eixo constantemente, girando, criando movimento a partir da inconstância sobrenatural que os eventos proporcionam aos personagens. É também o auge da arte em preto e branco de Burns, seus sombreados e suas luzes em espaços opacos criam formas incríveis nos delineados e nas expressões de quem desenha. O físico adolescente, ganhando novos traços, novos formatos de existência, é valorizado pelos obstáculos entre a luz e a sombra que definem toda sua nudez e suas possíveis mutações.

Ao longo de sua publicação, Black Hole  entrou para o patamar de quadrinhos independentes altamente influentes de sua década, junto das obras de Daniel Clowes (Ghost World, Como uma luva de veludo moldada em ferro) e Chris Ware (Acme Novelty Library, Jimmy Corrigan). Assim, o passo seguinte para um criador tão pulsante quanto Burns seria a própria reinvenção, ainda que dentro da cronologia de seu universo. Isso aconteceu na trilogia Sem Volta, publicada em três álbuns em estilo europeu, entre 2010 e 2014.

O terror do fim do ensino médio agora é o terror da experiência pós-colegial. A transição tão desgastada entre a adolescência e a vida adulta, tema mais do que regurgitado pelo quadrinho americano dos anos 90 até hoje, é reinventado em Sem Volta por uma fragmentação dissociativa do fim da juventude e do abandono de si mesmo. O protagonista da trilogia vive um estado de quase-morte onde revive memórias de um relacionamento caótico, desilusão artística e enfrentamentos extremos da maioridade. Vive uma jornada onírica com criaturas répteis em um mundo paralelo de pesadelo, onde a violência pelo trabalho e a autoridade brutal são dogmas de convivência. Mais uma vez, o espaço sobrenatural é menos uma metáfora e mais uma materialização fantástica do que há de mais concreto.

Burns adentra de vez a ascensão punk em Sem Volta. Na fuga dos jovens artistas dos subúrbios após o fim da escola, os personagens habitam uma cidade média e passam os dias em shows de bandas da área em bares decadentes e produzindo um material artístico entorno de automutilação, revolta controlada e sexo extremo. As desilusões são maiores, a destruição do próprio corpo não parte mais de uma peste inevitável, mas de uma necessidade constante do suburbano urbanizado. E as consequências destrutivas do sexo são outras: não mais a deformidade e o gosto pelos monstros, agora é o temor da paternidade e o terror de ter uma criatura se formando dentro do seu corpo. Em resumo, o fetiche não pode mais ser o tesão no deformado, tem que ser na deformação de si mesmo. Novamente, não há qualquer julgamento moral disso na obra, pelo contrário, Burns compreende e torna gráfico as pulsações revoltosas dessas novas experiências.

Sem Volta já parte de uma diferenciação visual clara: é um quadrinho colorido. Burns usa esse diferencial como construção das próprias sequências visuais, com páginas onde os quadros são simplesmente variações de cores nos limites retangulares. Esses quadros também parecem mais íngremes, quase claustrofóbicos. O formato de álbum do quadrinho (a aventura Tintin de Burns possível) permite páginas com um maior número de quadros, com uma linguagem muito mais veloz e asfixiante do que as obras anteriores.

Das periferias suburbanas aos grandes centros, das noites de filmes na televisão ou de sexo atrás de portas trancadas, todos parece compartilhar das mesmas pulsações. Totalizados em monstros, artistas fracassados, seres rastejantes, tendências suicidas e flertando a todo momento com a bestialidade, os jovens de Charles Burns aceitam a realidade ao incorporar todo o universo de horror intrínseco a ela. Mais do que tudo, o que há de mais custoso para o autor é a aceitação de prazeres renegados e a necessidade de compreender certos aspectos desprezíveis e repulsivos da própria juventude para poder sobreviver. Se estão todos entregues ao terror, qual seria outra alternativa além de fazer a jornada pelo monstruoso um caminho de autopercepção? O buraco negro da adolescência parece um portal para prazeres muito mais totalizadores do que poderia imaginar-se. Resta querer perceber-se como mais um monstro.

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