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Há pouco mais de um mês (mais precisamente, há um mês e um dia, num doze de agosto), o crítico de cinema Ruy Gardnier, que hoje comanda as rédeas da programação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, se utilizava da palavra para, frente ao auditório da instituição, inaugurar um programa de exibição de clássicos em 35mm (o local é, hoje, uma das poucas salas do estado do Rio a dispor do maquinário necessário para uma projeção dessa bitola). Segundo consta, o filme originalmente escolhido para inaugurar o programa não havia sido localizado, impedindo que ele fosse montado conforme o planejamento inicial. Um substituto, portanto, fora prontamente elencado: o Alphaville, de Jean-Luc Godard. O auditório da Cinemateca do MAM não estava exatamente cheio. Era de se esperar que um Godard em 35mm fosse atrair mais gente – talvez, para alguns, um fim de tarde de sexta-feira pedisse por algo um pouco mais animado. De todo modo, o público carioca teve a chance de postergar em algumas horas o chope gelado para ver (gratuitamente, como de praxe na Cinemateca) o Alphaville de Godard em projeção 35mm, oblíquo ao fato de que exatamente um mês e um dia após tal sessão, amanheceria com a notícia do falecimento do homem por trás daquele filme de 1965 exibido em 2022.
Se referir a um filme de Godard como “clássico” chega a parecer inadequado, uma vez que desde 1959-1960, quando o diretor apresentou-se ao mundo com seu Acossado, tudo em sua arte transpirava o moderno. No cinema mundial, não tardou a ser alçado ao patamar de cineasta incontornável; no cinema brasileiro, influenciou nomes de maior importância, como Rogério Sganzerla e Glauber Rocha (dirigido, enquanto ator, pela batuta de JLG no Vento do Leste, de 1970). Manteve-se ativo e produtivo ano após ano, década após década, e em momento algum se recostou em qualquer tipo de zona de conforto. Quando se tornou uma figura de maior popularidade e relevância individual, passou a produzir seus filmes coletivamente sob o signo do grupo Dziga Vertov; aderiu ao vídeo de forma entusiastica assim que este se apresentou enquanto ferramenta, recusando-se a aderir ao purismo da película; experimentou com avidez os recursos e texturas do digital da mesma forma em que esticava e arrebentava a corda com a montagem em moviola.
O espectador que não decifra JLG é devorado por ele. Seus últimos longas lançados em vida, Adeus à Linguagem e O Livro da Imagem, nada tem a oferecer ao público que, romântico, espera um trabalho remetente aos tempos da nouvelle vague. Sua filmografia, além de extensa, é complexa e variada. Assistir a filmes rodados por Godard em diferentes épocas é um exercício que permite ao espectador o privilégio de ver um artista, que desde o princípio impressiona pelas inovações de linguagem, pela inteligência, sofisticação e irreverência, atingir a maturidade em diferentes níveis. Aos 91 anos, parecia eterno. Artisticamente, exibia a vitalidade de um novato. Em sua vida pessoal, no entanto, estava “exausto”, conforme reportaram os jornais. Recorreu ao procedimento do suicídio assistido na Suíça, como Alain Delon vocalmente tem anunciado planejar.
JLG era daquelas personalidades emblemáticas da virada de chave do século XX (impossível não mencionar, mesmo que de passagem, a revolução contracultural da década de 1960) que permaneciam vivas, atuantes e interessantes no século XXI. Após seu falecimento, um dos poucos artistas a ocuparem esse posto talvez seja Bob Dylan, na música e na literatura. Godard estava lá, em 1968, à frente do movimento, quando o Festival de Cannes foi cancelado em meio ao turbilhão que tomava conta da juventude e da intelectualidade francesas, e também estava lá, cinquenta anos depois, quando um curta-metragem intitulado Vent d’ouest apareceu e deixou a internet de queixo caído com um novo trabalho de Godard – apenas para, pouco depois, ser descoberto de que o tal filme não era de Godard coisíssima nenhuma. Talvez ele seja, mesmo, uma figura que encapsula esse momento de transição, que esteve presente enquanto figura central no cenário artístico mundial de ponta a ponta dos últimos sessenta e tantos anos, de seu alvorescer como crítico de cinema junto aos enfant terribles dos Cahiers du Cinema até seus últimos anos, como o cineasta recluso que se recusou a abrir a porta para Agnès Varda e J.R., conforme mostrado no Visages, Villages, de 2017 – num movimento que sabe-se ter sido encenado, e que apropriadamente se impõe enquanto registro final do coleguismo de décadas entre Godard e a hoje também falecida Varda.
Ironicamente, a cena supracitada serviu para atrair, entre certas parcelas do público, uma espécie de ojeriza à pessoa física (e mesmo ao artista) JLG, vendo-o enquanto um homem antipático, insensível, distante, blasé. Um dos últimos truques de Godard foi fazer certos espectadores torcerem o nariz para ele. É de se acreditar que, caso estivesse ciente disso, ele estaria mais do que satisfeito. Em momento algum Godard quis ser fácil, ser universalmente adorado ou compreendido, ser aclamado pela opinião pública ou tido como consenso. Saiu como entrou: provocando incômodo e estranheza em alguns, e granjeando a admiração de tantos outros. Seu falecimento não é apenas uma perda para a história do cinema, mas um evento que deixa o cinema contemporâneo menos experimental, menos inovador, menos desafiador. Que esse ponto deflagre voos mais audaciosos para seus colegas de profissão, que agora precisam segurar o rojão e ser levados pelo vento do leste.