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Bisbee ’17

Bisbee ’17

Documentário desconstrói mito faroeste ao passo que analisa trágica história da cidade

Matheus Fiore - 7 de novembro de 2018

A cidade de Bisbee, no Arizona, era vista como um lugar muito promissor por ser uma das principais fontes de cobre da América. Em 1917, um grupo de mexicanos que trabalhava nas minas da cidade de Bisbee, no Arizona, organizou um protesto reivindicando melhores condições de trabalho. O protesto, porém, não foi bem recebido. Os cidadãos estadunidenses se reuniram e, armados, baniram os 1200 imigrantes da cidade. Os mexicanos foram conduzidos até um deserto e abandonados para morrer. Os que sobreviveram, atravessaram a fronteira, que fica a pouco mais de dez quilômetros de Bisbee, e voltaram para o México.

Cem anos depois, o diretor Robert Greene vai à Bisbee para fazer seu documentário: “Bisbee ’17”. O filme tem como mote, além de estudar os efeitos do evento histórico, recriar o conflito utilizando os próprios moradores de Bisbee – incluindo artistas de teatro locais – como atores. Há uma forte carga política em “Bisbee ’17”. Ela, porém, nunca é transformada em um discurso direto. Greene opta por resgatar um evento sombrio da história americana a fim de alertar para possíveis repetições de uma tragédia xenófoba nos moldes da de Bisbee.

“Bisbee ’17” tem um começo arrasador. A história da cidade é projetada em uma tela vermelha, o que evidencia como a violência se tornou a pedra fundamental da cidade. Após a curta introdução, Greene começa a documentar Bisbee de uma forma pouco ortodoxa: um idoso é filmado distante, em um plano aberto que começa a ser filmado antes mesmo da primeira fala. O senhor ainda está tendo diálogos paralelos com um funcionário local antes de começar a dar seus depoimentos para o filme, o que  mostra que não se trata de um documentário comum: Greene almeja, com sua narrativa que mistura ficção e realidade e com planos gerais que abrangem muito mais do que as pessoas que prestam depoimento, expor a cidade, que seria ocultada caso a fala do homem fosse registrada em um close-up ou plano médio.

Ao utilizar planos abertos, Greene faz com que o grande elemento de seu enquadramento seja o espaço capturado pelas lentes, algo que notamos ser comum ao longo das duas horas de projeção. É um documentário interessado no que os cidadãos de Bisbee têm a dizer, mas ainda mais interessado em filmar os vazios daquela cidadezinha no interior do Arizona. Como um dos moradores diz, é uma cidade ocupada por muitos fantasmas, originados pela mitologia sangrenta que se formou há um século. Hotéis projetados para receber figuras que provavelmente nunca visitaram a cidade, instalações abandonadas, escavações e minas esquecidas… É uma cidade ocupada tanto pelos fantasmas dos que morreram em nome de um ultranacionalismo doentio, quanto pelos fantasmas das promessas nunca cumpridas – Bisbee nunca se tornou de fato o grande polo minerador que se esperava.

O apego ao passado parece ser parte da formação da cidade. As constantes encenações de tiroteios típicos de um faroeste de John Ford são um belo retrato disso, bem como as referências ao tiroteio de O.K. Corral – que já se tornou, em 1957, o ótimo “Sem Lei e Sem Alma”, de John Sturges e estrelado por Kirk Douglas e Burt Lancaster, diga-se de passagem – quando a obra comenta sobre a cidade vizinha, Tombstone. É nítido que, naquela região do Arizona, a mentalidade faroeste se faz presente pela força das raízes culturais e civilizatórias do século XVIII e XIX, quando a América, como a conhecemos, passou a existir.

Mas o que eleva “Bisbee ’17” a um alto patamar é a encenação feita na segunda metade da projeção. Utilizando atores das peças de teatro locais e descendentes dos responsáveis pela tragédia de 1917 para interpretar os culpados pelo ato e imigrantes que vivem em Bisbee para interpretar os mexicanos expulsos há cem anos, Robert Greene recria e ressignifica o acontecimento. É como se, assim como Clint Eastwood fez no audacioso e problemático “15h17 – Trem Para Paris“, Greene buscasse um exercício metalinguístico por meio de uma farsa consciente. Pois mesmo que o filme nunca esconda que há uma recriação de um evento histórico, o trabalho de câmera e de som utilizado é o típico de uma cena de guerra de um faroeste cinematográfico. No meio destas cenas, porém, Greene ainda tem a sensibilidade de encontrar close-ups  de pessoas assustadas com a situação recriada, como se o reviver do passado fosse a única forma de conscientiza-las do legado negativo da tragédia de 1917.

Com a encenação, Greene consegue três feitos brilhantes. O primeiro, que é o mais humano, é causar nos cidadãos de Bisbee uma reflexão acerca de seus antepassados e dos valores por eles deixados, o que resulta em muitos personagens com olhos marejados e sentimento de culpa por terem exaltado seus ascendentes; o segundo, que é o mais político, é fazer, sem nenhuma citação direta, um paralelo entre o expurgo dos mexicanos em 1917 e a política anti-imigração de Donald Trump; o terceiro, que é o mais grandioso e simbólico, é fazer uma desconstrução da mitologia faroeste que sempre estará no DNA da América.

“Bisbee ’17” é um documentário de múltiplos méritos. Partindo do estudo de um terrível marco da história americana, consegue lançar um novo olhar para toda a cultura estadunidense. Mesmo assim, rejeita o melodrama e a superexposição dos sujeitos documentados. O plano final, que começa registrando um grupo de pessoas jogando baseball e move a câmera para um campo vazio, é uma síntese perfeita da narrativa da obra de Greene: um registro de como tragédias criam fantasmas. Sejam eles promessas nunca cumpridas, sonhos nunca realizados ou famílias que deixaram de existir. É, em diferentes camadas e de diferentes formas, um filme de fantasmas.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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