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Blade Runner: memória e alma

Blade Runner: memória e alma

Yasmine Evaristo - 16 de novembro de 2017

Esse artigo propõe analisar as relações entre homens e máquinas, em “Blade Runner” e “Blade Runner 2049”, buscando apontar suas semelhanças em atitudes e pensamentos, contendo spoilers dos filmes citados.

É da natureza humana a necessidade da propriedade. Assim, o homem projeta sua personalidade sobre algo. A nomeia, classifica, assume sua “autoria”. Um instinto tão natural quanto o de se alimentar.

Ao nascermos, às vezes antes disso, a primeira evidência de individualidade é o nosso nome. Ele espelha aqueles que o escolheram. Por trás de algumas letras, usadas para identificação, existem histórias que somam ao nome memórias.

Em Blade Runner (1982), mesmo inferiores aos humanos nascidos, os replicantes possuem identificação por meio de nomes que ultrapassam seus códigos alfa numéricos. Em Blade Runner 2049 (2017), isso é eliminado. O protagonista mesmo não passa de um mero código, obediente e servil à comunidade. Um modelo aperfeiçoado daqueles autômatos obsoletos.

Nada de novo sob o sol na terra dos homens

Os quase-humanos, recriados à  imagem e semelhança de seus inventores, apesar da singularidade de um “nome próprio”, são objetos que limpam dos homens a culpa pela escravidão. A tal alma, que o corpo humano comporta, parece ser convenientemente esquecida para justificar atitudes egoístas. E aos sem  espírito resta a função de objeto.

Blade Runner 2049 olho abertura começo

 

Ao serem alterados, são programados para entenderem “seu lugar” na sociedade. Assépticos, corretos e “de bem”, não questionam. Não foram concebidos pelas vias naturais e, assim, não devem ter liberdade. Seres sem alma, podem ser utilizados como os detentores do poder bem entenderem.

O medo do que destoa dessa verdade assusta. Uma criança concebida por seres artificiais é sinônimo do apocalipse. Nas mãos corretas, ela desapareceria sem rastros; nas erradas, se tornaria o trunfo de uma guerra. Algo que afirme mais um erro da humanidade é inconcebível. E isso abala a todos. Reacende memórias mesmo naqueles em que elas foram implantadas. 

O valor da memória no universo de Blade Runner

Caracterizados por não terem passado, ponto que afirma sua condição de artificialidade, replicantes têm memórias implantadas. Essas são idênticas em todos, derivadas de algum evento importante aos criadores. Esses deuses preservam o que acham importante em suas criaturas. Há, então, a prova de que o passado, mesmo trivial, é necessário.

Entender o valor de algo que não existe, mas desperta sentimentos, é para seres racionais, dotados de um “coração”. Uma das funções da alma é possibilitar essas faculdades próprias da vida, como o amor. O amor ao próximo é o grande presente de Deus a seus filhos.

Após o desaparecimento dos registros e dados digitais existentes no mundo, os implantes são o meio encontrado para preservar o que já aconteceu. Uma tecnologização da tradição oral e escrita. Livros são raros e diálogos também. Algo precisa ser criado para substituí-los.

O que existe independe do tempo, desde que transmitido aos outros. Esse processo altera os fatos, cobrindo-o com novos adornos, modificando o entendimento dos que acessam a informação. Assim é estabelecida a importância do que constitui nosso passado. 

Blade Runner 2049 Sapper Morton Dave Bautista

Semelhanças entre homens e máquinas

Qual o presente dos deuses da tecnologia aos seus filhos? Considerando as equivalências entre criador e criatura, apenas o método de fecundação os difere. Há os passivos e os proativos, os que se calam e aguardam seu desligamento e os que aproveitam até seu último segundo de vida; os que apenas existem e os que creem em seu direito de sobreviver.

Mesmo nas mentes artificiais esse “algo a ser lembrado” comove. Em K (Ryan Gosling) ou em Deckard (Harrison Ford), por meio de um sonho, a vontade de não ser mais um corpo passivo é desperta. Com isso, os questionamentos se tornam inevitáveis.

O medo desencadeado por esse questionamento provoca aflição em todos. Os rebeldes Pris (Daryl Hannah) e Roy (Rutger Hauer) lutavam pelo direito de adiar o fim de suas existências. Como nós, eles apenas queriam a oportunidade de aproveitar mais um dia. No contexto, humanos que se entendem superiores às máquinas não deixam de ser um equivalente das mesmas em seus anseios e necessidades.

Independente das pré definições em seu códigos (numéricos e genéticos) o medo da perda dos dados/memória é comum aos dois tipos de seres. A morte, o fim perdido no tempo como as lágrimas diluídas na chuva.

Consciência humana

Diante das similaridades entre homens e máquinas, o questionamento sobre o que delimita quem merece respeito ou direitos pode se estender em direção a qualquer situação na qual um “estranho” é privado de seu direito. Não seriam os replicantes migrantes expatriados em sua própria terra? A partir do momento que estes contestam as ordem se tornam mal vindos, devem ser aposentados da vida. Devem?

Ambos se tornam monstros ao clamar pelo direito à sobrevivência (os homens por precisarem de mão de obra, os androides por se negarem à servidão). Perdem a razão e usam da violência como arma.  Bradam suas armas, se destroem em um ciclo infindável de busca da razão.

Aos poucos os seres se extinguem e, com isso, jogam ao vento o que deve ser lembrado. Repetem  ciclicamente, em sua história os mesmos erros em nome do ego, do “ter razão”. Vindos do barro, “o homem é o lobo do homem“, reduzindo a poeira a possibilidade de melhoras na convivência social. Manipulados pela genética, um rastro do que deveria ser praticado como humanidade.

Aos que têm esperança, aguardar os dias melhores que virão.

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