Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

‘Capitã Marvel’ e uma nova abordagem: a de gênero

‘Capitã Marvel’ e uma nova abordagem: a de gênero

Como o filme explora as características exclusivas de sua protagonista

Gustavo Pereira - 13 de março de 2019

Esse artigo é sobre o incrível “Capitã Marvel”, mas não deixa de ser uma reflexão sobre o que nós, críticos de cinema, estamos fazendo do nosso trabalho: sempre pedimos por algo novo, diferente, mas estamos preparados para perceber quando algo assim surge? Ou será que chamamos de “ruim” tudo o que não compreendemos plenamente para mascarar nossa incapacidade?

E você, leitor fã de quadrinhos: permite que abordagens fora da sua zona de conforto expandam sua percepção ou as rejeita para voltar ao lugar quentinho da banalidade?

Capitã Marvel

LEIA TAMBÉM: CAPITÃ MARVEL (CRÍTICA)

Tendo essas reflexões em mente (afinal de contas, faço parte dos dois grupos), proponho uma análise sobre como “Capitã Marvel” se tornou um dos melhores filmes do estúdio homônimo exatamente ao rejeitar a banalidade, ir por caminhos inesperados e valorizar ao máximo o potencial de sua protagonista, capaz de chegar a lugares onde nenhum outro herói pode.

Obviamente, este artigo está repleto de SPOILERS.

Reter (e compartilhar) informações

“Capitã Marvel” tem uma mensagem muito mais poderosa que o seu canhão de fótons, mas o espectador precisava de tempo para se envolver emocionalmente com a personagem e acreditar nela. Era preciso que criássemos empatia por Vers (Brie Larson). E a melhor forma de criar empatia é dar ao público o mesmo que à protagonista.

Vers não lembra de seu passado, apenas de fragmentos. A Marvel não costuma ousar em suas montagens (o máximo que ela se permite fazer é um grande flashback que explique alguma reviravolta nas tramas, mas a cronologia linear é a guia-mestra do seu storytelling), mas informações importantes de “Capitã Marvel” são distribuídas de forma não-linear, de acordo com as lembranças de Vers.Capitã Marvel

Esse tipo de montagem oferece três benefícios: permite que o espectador “se coloque nos sapatos” da protagonista e o obriga a juntar sozinho esses fragmentos espaçados para dar a eles alguma coerência. Como há lacunas, também possibilita que cada um as preencha com as próprias teorias, deixando a história interessante todo o tempo. Não sabemos quem é Vers (nem ela sabe), mas queremos saber (e ela também).

Saber do está falando

Não há limites para a ficção. Mas, para ela ser convincente, é preciso ter um pé na realidade. Isso nada tem a ver com realismo, mas com verossimilhança. Não precisamos da verdade para acreditar, mas não podemos nos engajar numa história que não tenha um sentimento verdadeiro.

O mundo passa por uma das maiores crises migratórias da História. São literalmente milhões de pessoas que deixaram um lar para trás e não conseguem encontrar um novo lar à frente. Ou, quando conseguem, são taxados de terroristas, marginais, estupradores, “vagabundos”. Muitas vezes, por habitantes dos países responsáveis diretamente pela destruição de seus locais de origem.

Capitã Marvel

Não é por acaso que os Skrull chegam à Terra por uma praia

Com isso em mente, é fácil ver no povo da raça Skrull um paralelo óbvio com os imigrantes de diferentes nacionalidades que se tornaram agenda política do chamado “Primeiro Mundo”. E ainda mais fácil é ver o quanto Hala, planeta-natal dos Kree, se parece com os Estados Unidos, uma sociedade dita “civilizada”, mas que não pensa meia vez antes de levar “democracia” a países que não se curvam aos seus interesses estratégicos.

São esses paralelos que tornam a revelação de Carol Danvers – que agora sabe o seu nome – tão poderosa: ao saber apenas parte da história, ela tinha uma visão completamente equivocada da realidade. A sua epifania é compartilhada com o público porque ambas as histórias, a ficcional e a real, partem de um mesmo sentimento de certeza (“eu estou lutando uma luta justa”) para um de choque (“eu sou um monstro”). E, se ela pode transformar essa verdade inconveniente em motivação para mudar, nós também podemos.

Usar o que só a protagonista tem a oferecer

Na longa lista de argumentos porcos que a Humanidade desenvolveu ao longo de sua existência, poucos são tão porcos quanto “não importa se é homem ou mulher, branco ou negro, hetero ou gay”. Igualdade de direitos não é negar as particularidades de cada indivíduo, mas celebrá-las. E fingir que pessoas diferentes não recebem tratamentos diferentes numa era de tanto preconceito e violência é hipocrisia ou ignorância.

Capitã Marvel

Quando falamos de ficção, essas diferenças podem servir de excelentes possibilidades para “destravar” (como uma fase secreta de um jogo) novos caminhos narrativos. Se os roteiristas Anna Boden, Ryan Fleck e Geneva Robertson-Dworet tratassem a Capitã Marvel como Homem de Ferro, Hulk ou Thor, estariam perdendo oportunidades que são inalcançáveis para estes personagens, mas naturais para ela. Por um motivo tão simples quanto óbvio: Carol Danvers é uma mulher.

Uma mulher passa por desafios difíceis de serem compreendidos por homens. Na maior parte do tempo, tem seu potencial tolido por eles ou é cobrada num nível injusto exclusivamente por ser mulher. Um homem não precisa “se provar” na mesma medida que uma mulher precisa, ou pelo menos não na mesma frequência.

Panfletar é ótimo

“Capitã Marvel” explora esse potencial em sua plenitude. Yon-Rogg (Jude Law) não quer que Vers seja “a melhor forma de si”, mas sim uma forma que ele possa controlar. Ela não estará “pronta” quando puder derrotá-lo sem usar seus poderes. Ele só pode enfrentá-la se tirar os poderes dela. A Inteligência Suprema (uma representação da nossa sociedade) lhe diz que “o que foi dado pode ser tirado”, quando na verdade o poder sempre foi dela. Como prega o feminismo, a invencibilidade de Denvers vem quando ela descobre o poder interior que ela sempre teve. Quando ela encontra a metade perdida de sua placa de identificação, simbolicamente descobre quem é de verdade. Inteira.

Capitã Marvel

“O teto da Capela Sistina poderia ser melhor, mas se perde na panfletagem cristã”

Grande parte do ódio ao filme vem daí, da “panfletagem feminista”. Dois pontos merecem reflexão: o primeiro é que toda obra é panfletária. O Homem Vitruviano é uma panfletagem de Leonardo da Vinci sobre a perfeição intrínseca da anatomia humana e a Capela Sistina é uma panfletagem de Michelangelo sobre a perfeição intrínseca da obra de Deus, para ficar em dois exemplos clássicos. O segundo ponto é que quando acontecem absurdos como o Super-Homem fazer a Terra rodar ao contrário para reverter o tempo, o máximo que eles provocam são risos, mas nunca ódio. A forma como uma obra de arte repercute em nós diz mais a nosso respeito do que a respeito da própria obra.

Quando Danvers está em queda livre e “aprende” a voar, o roteiro está nos dizendo de forma elegante que uma mulher, frente a uma adversidade, sempre será capaz de se superar e sair dela mais forte do que entrou. Podemos ver essa cena e nos lembrar de nossas mães. Também podemos chamar Brie Larson de vaca. Cada um sabe a verdade que carrega no coração.

Revisitar, aprimorar, inovar

Falando no Super-Homem, há semelhanças entre ele e a Capitã Marvel. Não apenas nas cores do uniforme ou no fato de que ambos combatem os inimigos sem máscara. Num plano específico, já no final do filme, quando Carol está na atmosfera, flutuando, ela olha para a Terra a seus pés, fotografada em contra-plongée. É uma homenagem gritante ao primeiro super-herói já criado. Mas não é gratuita.

Recentemente, “Mulher-Maravilha” encontrou a tela do cinema para ser a primeira história do gênero de super-herói protagonizada por uma mulher. Comparar “Capitã Marvel” a ela é natural e oportuno, mas não é nas semelhanças que as duas personagens brilham. É nas diferenças.

Capitã Marvel

Diana Prince cresceu num ambiente propício para desenvolver suas habilidades especiais. Quando precisou conhecer a podridão do “mundo exterior”, o fez já invulnerável. Ela pode sofrer pelas dores dos seus semelhantes, pois é uma personagem empática, mas ela própria não corre risco nenhum (“Liga da Justiça” falha miseravelmente em mostrar isso, mas ela é tão poderosa quanto o Super-Homem e não é vulnerável a kryptonita). Carol Danvers cresceu sentindo na pele o quanto o mundo é cruel com as mulheres. É simbólico que, no seu momento de maior fraqueza, Rogg exija que ela prove ser “digna” de enfrentá-lo numa luta corporal. Mais simbólico ainda é Danvers se negar. “Eu não tenho que provar nada a você”. Ela está, sem trocadilhos, empoderada.

Kal-El, na mesma linha, sempre foi poderoso na Terra. Sua jornada – tão interessante quanto – é de aprender a ser humano. Danvers, ao contrário, precisa aprender a ser poderosa. Mas isso é fácil para quem sabe o que é ser humano. “Capitã Marvel” presta reverência a dois personagens consagrados, mas enriquece o gênero com algo exclusivamente seu.

LEIA TAMBÉM: COMO “CAPITÃ MARVEL” CONTRIBUI PARA O DIÁLOGO SOBRE O FEMINISMO

O que “Capitã Marvel” nos ensina?

É possível contar velhas histórias de formas novas e cativantes. Ao entender os sentimentos que se deseja evocar na audiência e as particularidades dos personagens à disposição, algo simples como o “azarão” que triunfa por sua fibra moral e corrige uma injustiça pode se tornar numa poderosa ferramenta para comover e inspirar pessoas.

Capitã Marvel

Porque, com as ferramentas certas, qualquer um pode ser o herói da própria história.

Topo ▲