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Contratiempo

Contratiempo

Matheus Fiore - 19 de julho de 2017

Adrian Dória vivia uma vida perfeita. Com uma relação aparentemente saudável com sua esposa, o empresário consegue administrar seu caso extra-conjugal sem muitos riscos enquanto ascende profissionalmente graças aos seus bons investimentos. Certo dia, acorda desorientado em um quarto de hotel, com sua amante morta no cômodo ao lado, coberta por dinheiro e sem nenhuma explicação. Para não ser preso, Dória contrata, além de seu advogado principal, uma outra profissional especialista em construir testemunhos de defesa, Virginia Goodman. Contratiempo, então, desenvolve-se ao redor das conversas entre a advogada e seu cliente. Junto à profissional, pouco a pouco vamos descobrindo as diversas camadas ocultas que permeiam o caso de Adrian.

A trama é bem desenvolvida por meio dos saltos entre os flashbacks do protagonista e suas conversas com a advogada, que tenta, assim como nós, descobrir a verdade por trás da morte da amante, Laura. A montagem faz um trabalho exemplar ao encontrar ganchos que conectem o passado e o presente de forma que haja uma imersão psicológica dos personagens em suas memórias, como o isqueiro que afunda na água e recorda o protagonista de uma cena em um lago. Há também o uso da montagem para sugerir a distorção dos fatos, como quando Adrian conta sua história para Goodman e, quando a advogada o interrompe, o Adrian “do passado” olha para trás”, como se ouvisse o chamado.

E se falamos de distorção dos fatos, há de se enaltecer o trabalho do roteiro que, a todo momento, consegue inverter os rumos do filme e nos fazer questionar as intenções de todos os personagens. Afinal, quase todos os flashbacks são guiados pelos relatos de Adrian. Verdade ou não, só temos acesso aos acontecimentos por meio de seus relatos, que desde o começo nos fazem questionar o protagonista por sempre inseri-lo com as intenções mais puras possíveis em um cenário onde, obviamente, ele teve participação em escolhas não muito “corretas”. E, aqui, a ótima atuação de Mario Casas como Adrian ainda fortalece a eterna sensação de dúvida. Sua constante frieza nos faz questionar se o personagem é um psicopata mitomaníaco ou se está realmente abalado com sua situação.

A direção do talentoso Oriol Paulo tem momentos sublimes. Quando a advogada Virginia Goodman chega ao cerne do caso, por exemplo, a vemos ser filmada de frente para o protagonista. Há uma diferença, porém: enquanto Adrian é visto diretamente, a figura de Virginia é distorcida por ser visível apenas através de um aquário, o que cria uma bolha visual. Contudo, aos poucos a câmera se move e puxa a advogada para fora da bolha, nos mostrando através desse sutil movimento como a personagem consegue extrair a verdade de seu cliente e, finalmente, estar em igualdade com ele.

Se visualmente o filme é praticamente impecável, principalmente graças à montagem e à direção, não podemos dizer o mesmo do roteiro (mesmo com os acertos ressaltados no começo do texto). Pela complexidade inerente à qualquer trama que dependa de inúmeras reviravoltas, é normal que haja uma ou outra escorregada. O que se vê em Contratiempo, porém, não são erros, mas fragilidades na construção das reviravoltas. A todo momento a obra depende de elementos demasiadamente frágeis para mudar o rumo do enredo. Há um momento, em que um personagem passa a desconfiar de outro simplesmente pela mudança na angulação do assento do carro, algo que não só é bizarro, como desencadeia inúmeras outras descobertas que dependem de várias coincidências para se justificarem. Por outro lado, o texto planta pistas inteligentes ao longo da projeção que, ao final, encaixam-se perfeitamente na conclusão do filme, como o quadro em uma parede que sugere algo que só é explicitado nos minutos finais.

A fotografia de Xavi Jiménez também é digna de nota. Se no presente há o uso de uma paleta de cores mais terrosa e natural, os flashbacks que explicam todo o passado de Adrian Dória são geralmente ilustrados com um constante tom frio, na maior parte das vezes azulado (principalmente pela predominância de cenas externas). A paleta mais gélida funciona ainda como um indicativo da frieza dos relatos do protagonista, que demonstra muito mais emoções quando visitamos seus relatos do que quando conversa com sua advogada. Essa escolha, então, intensifica mais ainda a sensação de desconfiança quanto às palavras de Adrian, dificultando que o público solucione o caso antes do ato final.

O clima de tensão ainda agravado pelo bom uso do silêncio e pela bela trilha sonora. Inteligentemente, Contratiempo escolhe o silêncio para os planos mais importantes, fazendo com que o filme ganhe respiro e estimule a atenção do espectador. Como efeito, não há desvio gerado pelo som, proporcionando atenção total do espectador nos elementos visuais, como os close-ups que dão pistas da conclusão do caso. Mas há ainda o piano de Fernando Velázquez, que é imprescindível para estimular o mistério ao acompanhar principalmente os travellings de cenas onde há algum segredo a ser explorado.

Mesmo com ligeiros tropeços na parte textual, Contratiempo se destaca pela riqueza técnica que, com uma invejável harmonia, trabalha sempre a favor da trama, dando as pistas certas para a solução do mistério sem nunca sufocar o espectador com excesso de informação. Sendo ainda auxiliado por atuações eficientes (e que ajudam a manter o mistério até o fim da projeção), o resultado é um suspense instigante, envolvente e que trabalha com excelência a relação de pista e recompensa com seu espectador.

 

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