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Crimes do Futuro

Crimes do Futuro

Filme-manifesto

Wallace Andrioli - 19 de julho de 2022

“O quão radical você é?”, pergunta um personagem ao protagonista Saul Tenser (Viggo Mortensen) em determinado momento de Crimes do Futuro. Tenser é um performer de um tipo muito específico no futuro enigmático apresentado por David Cronenberg: ao lado de sua parceira Caprice (Léa Seydoux), ele realiza cirurgias em público para extração dos novos órgãos desenvolvidos no seu corpo em constante mutação. Cronenberg, sem dúvidas, se mostrou um artista radical em vários momentos de sua carreira. Mas Crimes do Futuro falha no intento de ser mais um desses momentos.

Há aqui a retomada de temas e motes visuais caros ao diretor, como o intercâmbio do corpo com a tecnologia e uma concepção organicista dos dispositivos utilizados pelos personagens. O filme também lida com a presença de uma organização clandestina que defende a abertura da sociedade ao consumo alimentar de produtos sintéticos, o que representaria o próximo passo na evolução da espécie humana, e o líder desse movimento pretende usar o trabalho de Tenser e Caprice como meio para um statement de sua causa. Gesto que reverbera o próprio lugar que Crimes do Futuro parece pretender ocupar na filmografia de Cronenberg: uma espécie de filme-manifesto, que sintetiza as principais ideias do diretor, sobretudo sua fascinação pela integração entre o biológico e o maquínico.

No entanto, Crimes do Futuro tem a necessidade de apresentar muitos elementos que compõem esse novo e estranho mundo, o que gera uma verborragia cansativa, por vezes expositiva demais. É verdade que Cronenberg explicita, mais uma vez, sua impressionante criatividade visual, em objetos e situações que compõem a narrativa: a cadeira de alimentação e a cama do protagonista, o homem com várias orelhas e as performances de Tenser e Caprice, a história que abre o filme, do menino assassinado pela própria mãe. Mas ele não mergulha totalmente nas possibilidades transgressoras e prazerosas dessas imagens, que acabam reduzidas pelas contingências de uma trama com detalhes, personagens e acontecimentos nem sempre interessantes (como as duas cenas com o médico, as conversas entre o protagonista e o policial e, no limite, mesmo os contatos de Tenser e Caprice com os burocratas vividos por Kristen Stewart e Don McKellar, que tomam bastante tempo).

Cronenberg não consegue criar aqui algo próximo do impacto da cabeça explodindo pela força da mente em Scanners – Sua Mente Pode Destruir (1981), ou do processo grotesco de transformação física em A Mosca (1986), ou, para ficar em exemplos temática e visualmente semelhantes a Crimes do Futuro, das interações entre corpos e máquinas em Videodrome – A Síndrome do Vídeo (1983) e eXistenZ (1999). Há em todos esses filmes um prazer hipnotizante por lidar com uma fisicalidade grotesca que, em Crimes do Futuro, apenas se insinua. O mais perto que o filme chega disso é o início com o garoto comendo uma lixeira plástica, cena que enuncia uma atmosfera de horror que nunca se concretiza totalmente. Todos os outros momentos visualmente interessantes de Crimes do Futuro soam como rascunhos de boas ideias, espécie de resumo apressado da essência do cinema de Cronenberg. Nasce daí, portanto, um filme-manifesto fraco enquanto tal.

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