Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock
Mais do que a primeira série brasileira produzida pela Netflix, 3% é a prova de que um roteiro inteligente pode compensar deficiências de orçamento e elenco. Bebendo de fontes clássicas da ficção científica, sociologia, filosofia e cultura pop, o resultado é sólido e convincente, deixando bases para uma nova temporada e o desenvolvimento de uma mitologia própria.
A série tentava ver a luz do dia desde 2011, quando um episódio piloto foi produzido para buscar financiadores. A premissa é simples: “o mundo dividido em dois lados, um farto e um escasso. Entre eles, um processo de seleção”. Este processo admite jovens de 20 anos para uma única tentativa de passar para Maralto, o “lado de lá”, farto. As regras são arbitrárias e a qualquer momento as pessoas podem ser eliminadas. Não há segundas chances ou misericórdia, a única certeza quando se entra é de que apenas 3% restarão ao final.
Este é o primeiro acerto do criador Pedro Aguilera: estabelecer um paralelo entre o Processo de 3% e os processos seletivos de multinacionais. Inclusive a primeira prova, dos cubos, é tão sem propósito quanto as dinâmicas de grupo pelas quais candidatos a vagas de emprego precisam passar. Já antes disso, nas entrevistas preliminares, o único objetivo dos membros do Processo é desestabilizar os candidatos e destruir sua confiança e seu amor-próprio.
O coordenador do Processo, Ezequiel (João Miguel), cujo nome significa convenientemente “o poder de Deus”, simultaneamente coloca os candidatos no limite da sanidade e incute em suas mentes o dogma meritocrático “você é o criador do seu próprio mérito”. Independente da desumanidade do Processo, os candidatos teriam as mesmas chances de passar, pois vieram do mesmo lugar. O que Ezequiel e o Maralto ignoram é que a própria arbitrariedade do Processo cria injustiça na seleção: ele não é sobre quem é mais preparado, mas quem possui menos amarras morais para alcançar o objetivo.
O núcleo principal de candidatos é composto por Michele, Fernando, Rafael, Joana e Marco. Cada um tem um motivo para estar no Processo, e é admirável que em oito episódios o desenvolvimento de cada um tenha sido tão satisfatório. Michele (Bianca Comparato) nos apresenta a Causa, movimento com clara inspiração no Socialismo que questiona a justiça em uma sociedade que conscientemente condena 97% da população à miséria e ao caos para manter os privilégios dos outros 3% abastados. Apesar de interessante, este é um ponto fraco da série: a Causa não é muito explorada. Michele deve passar no Processo para “fazer a diferença”, mas não sabemos como. Sabotando Maralto? Incutindo noções de igualdade no “lado de lá”? Incitando uma revolução? Essas são questões que ficarão para a próxima temporada.
Fernando (Michel Gomes) é um cadeirante que busca passar no Processo para provar a si próprio que sua deficiência não o limita. Criado por um pai pastor, ele é aquele que vê o Processo (e o Capitalismo em si) como uma religião, uma Terra Prometida para a qual apenas os merecedores irão. O único caminho de redenção possível.
Marx chamaria isso de “fetichismo da mercadoria”.
Rafael (Rodolfo Valente) se mostra desde o início capaz de tudo para seguir no Processo, sem fazer julgamentos morais sobre a justiça do sistema, apenas aceitando que a vida é daquela forma e ele não está disposto a viver no inferno do lado pobre. Seu desenvolvimento durante a temporada, contudo, mostra que ele também carrega o desejo de ser mais do que apenas outro filho numa família cheia de irmãos. Ele quer “fazer diferente”.
Joana (Vaneza Oliveira), talvez a personagem mais complexa da série, viu o lado ainda pior da pobreza do “lado de cá”. Ela chega no Processo e, no decorrer das etapas, descobre sua descrença não apenas com o sistema como com a letargia de quem fica no lado pobre e não se ergue contra o lado rico. É ela quem despertará para o “chamado à ação” descrito por Joseph Campbell.
Já Marco (Rafael Lozano) vem de uma família famosa por todos os membros conseguirem passar no Processo e prova que, mesmo em uma sociedade extremamente pobre, existem aqueles que são privilegiados e não se sentem incomodados com esta vantagem competitiva na hora de uma disputa que deveria ser igualitária.
Este Processo se passa em meio a uma crise administrativa. O Maralto testemunhou seu primeiro homicídio e Matheus (Sérgio Mamberti), não por acaso outro nome bíblico, este significando “o presente de Deus”, questiona se os métodos de Ezequiel não são muito rigorosos e defende que os Processos sejam mais leves e inclusivos. Para isso, ele envia Aline (Viviane Porto) para avaliar Ezequiel de perto e descobrir algo que possa tirá-lo da coordenação do Processo. Eventualmente, ela descobrirá.
3% se divide em dois arcos, com um episódio-flashback separando os dois e, ao mesmo tempo, contando a história de Ezequiel e como ele se tornou tão descrente e brutal. Sua esposa Julia, interpretada brilhantemente por Mel Fronckowiak (com quem eu tinha grandes reservas, admito), tem o conflito interno mais dramático de todos os personagens e seu destino muda Ezequiel, que ano a ano de Processo vai se tornando menos humano, assim como os candidatos que passam por ele e, tão doutrinados pelo status quo, são cães de guarda do interesse alheio, aprovam o Processo e condenam a Causa.
O roteiro não perde oportunidades. Ao estabelecer uma possibilidade, ele a explora. Não são poucos os momentos “oooh” nos oito episódios. Meu favorito é o quarto, uma representação grotesca de O Senhor das Moscas, livro de William Golding.
Negativamente, Direção de Arte, Figurino e Maquiagem pecam na inconsistência para criar pobres: um cabelo frisado, um pouco de sujeira no rosto e uma roupa artisticamente rasgada. Mesmo mal de The 100, onde todos os miseráveis são bonitos e atraentes. Algumas soluções de Cenografia também são manjadas, como a concepção asséptica do local onde o Processo é realizado, para contrastar com a pobreza suja das favelas do “lado de cá”. Os atores do elenco de apoio são fracos, principalmente quando comparados aos protagonistas, que estão muito bem. As cenas com a participação deles são realmente risíveis pela pobreza de interpretação. O uso de atores pesados como Mamberti e Zezé Motta foi desperdiçada pelo pouco tempo (e espaço) de tela.
Isso não são pobres, são ricos sujos
E isso não é uma surra, é uma groselha
ISSO JÁ ESTÁ MAIS PERTO DE UMA SURRA
Apesar do final enfraquecer a oposição entre Processo e Causa, 3% cumpre seu papel em oferecer uma trama inteligente e ousada. A Direção não aparece muito, mas tem seus momentos de brilho usando enquadramentos com personagens refletindo em portas de vidro, espelhos etc. para se sobrepor aos seus interlocutores, embaralhando a perspectiva de quem está no controle. Seu grande mérito está no Argumento. Poderia virar uma versão de baixo orçamento para Jogos Vorazes, mas consegue ter assinatura.
A solidão opressiva de Fernando, um dos quadros mais bonitos da temporada
Cássia (Luciana Paes) não está falando com Joana, mas consigo mesma…
… enquanto Joana se vê onde Cássia está e precisa decidir se é isso que quer. Esta é uma das sequências mais ricas no quesito Direção
A segunda temporada definirá se 3% veio para ficar, mas não deve em nada para produções do gênero mundo afora. O que, considerando as baixas expectativas por aqui, já é digno de elogios. Tire suas próprias conclusões assistindo agora mesmo.