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Chernobyl – 1ª temporada

Chernobyl – 1ª temporada

As consequências de um poder irresponsável e sem transparência

Wallace Andrioli - 18 de julho de 2019

Grande parte do êxito da minissérie “Chernobyl”, escrita por Craig Mazin e dirigida por Johan Renck, vem de sua capacidade de reconstituir minuciosamente o desastre nuclear ocorrido em 1986 na Ucrânia soviética. Estão em cena cada ação dos responsáveis pela explosão do reator 4 da usina de Tchernóbil, cada etapa da gigantesca operação de contenção dos danos levada à cabo pelo governo de Mikhail Gorbachev, bem como as consequências mais devastadoras sobre a população da região e pessoas que tiveram contato com o material radioativo liberado. Nesse último aspecto, Mazin frequentemente se aproxima dos relatos constantes no livro “Vozes de Tchernóbil: A história oral do desastre nuclear”, da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, conseguindo emular sua força em ao menos um caso: o do bombeiro Vassily Ignatenko (Adam Nagaitis) e sua esposa Lyudmilla (Jessie Buckley), personagens trágicos, que, na minissérie, protagonizam momentos extremamente dolorosos.

Ao mesmo tempo que dedica atenção máxima aos detalhes, “Chernobyl” aposta numa crítica política pouco específica. É difícil falar propriamente de anticomunismo aqui, considerando que as referências ao autoritarismo soviético são bastante genéricas – a onipresença da KGB, a construção visual em tons esverdeados e cinzas, remetendo a uma sociedade “sem vida”, opção estética bastante comum em filmes que se referem ao leste europeu nesse contexto – e que elas estão temporalmente deslocadas em relação à Guerra Fria. Mazin parece direcionar seus ataques às ditaduras em geral, com sua cultura do silêncio e ausência de transparência e responsabilização perante os cidadãos.

A ênfase nesses elementos, no entanto, aponta também para outro alvo, bastante contemporâneo: o governo Trump. Tanto pelos flertes do presidente norte-americano com o autoritarismo, quanto por sua aproximação da Rússia de Putin, herdeira, em alguns sentidos, da União Soviética. Contribui para esse pretenso universalismo direcionado para os Estados Unidos atuais a própria opção dos realizadores por quebrar o absoluto realismo da reconstituição de “Chernobyl”, ao colocar todos seus personagens falando inglês. Objeto de reclamações de espectadores e críticos afeitos às tentativas de reprodução ipsis litteris da realidade na tela, a escalação de atores anglófonos, no fim das contas, teve sentido não só comercial, mas também político.

E o fato é que “Chernobyl” é muito efetivo na construção dessa crítica generalista. Mazin e Renck dimensionam com precisão não só os efeitos brutais do acidente nuclear sobre as vidas de pessoas comuns, mas também a absoluta incredulidade com que ele é recebido pelas autoridades soviéticas. Há muita incompetência e sobreposição de interesses individuais aos públicos, especialmente por parte dos diretores da usina de Tchernóbil, mas há também um imobilismo compreensível, decorrente da escala do ocorrido. Nesse sentido, as cenas das reuniões dos cientistas Valery Legasov (Jared Harris) e Ulana Khomyuk (Emily Watson) com o Conselho de Ministros da União Soviética são ao mesmo tempo dotadas da gravidade esperada e de um humor inusitado, advindo das reações estupefatas de Gorbachev (David Dencik) e Boris Shcherbina (Stellan Skarsgard).

Esse último, aliás, é dos personagens mais interessantes da minissérie. Vice-presidente do Conselho de Ministros, líder respeitado e capaz de fazer abater sobre quase qualquer um o poder do Estado soviético, Shcherbina vai, aos poucos, sendo humanizado de forma bastante verossímil. Ele jamais deixa de ser a figura imponente que, no primeiro episódio, ameaça arremessar o protagonista de um helicóptero em pleno voo. Mas, no caminho, se impressiona com as demonstrações sucessivas de coragem de soldados, bombeiros e funcionários da usina (a tão proclamada disposição inesgotável dos russos para o combate, que, vista com os próprios olhos, produz efeito distinto do das propagandas governamentais), trava uma respeitosa amizade com Legasov e encara sua própria mortalidade. Ao final, Shcherbina é um sujeito capaz de protagonizar um belo diálogo sobre a persistência da vida e os significados das ações dos homens.

Humanizar a burocracia de uma ditadura. Ainda que “Chernobyl” permaneça aferrado a uma representação típica, por exemplo, da KGB, é valoroso esse movimento de enxergar pessoas concretas por trás das engrenagens do autoritarismo (de qualquer matriz ideológica). A defesa, feita na minissérie, da necessidade de accountability por parte do poder se torna, assim, menos abstrata e mais compartilhada. O próprio Legasov, “herói” de “Chernobyl”, está longe da dissidência geralmente valorizada em narrativas ficcionais sobre a União Soviética e congêneres. Como exposto no último episódio, o cientista era um membro ativo do Partido Comunista desde a juventude e foi responsável por impedir a ascensão de colegas de trabalho judeus. Ou seja, mesmo no interior do criticismo genérico às ditaduras e à falta de transparência do poder, há espaço para a ambiguidade e a complexidade.

Em mais de um dos relatos que compõem o livro de Svetlana Aleksiévitch aparecem referências à impossibilidade da arte expressar adequadamente os significados do ocorrido em Tchernóbil. De um jornalista entrevistado pela escritora: “O que se deve fazer não é escrever e sim anotar. Documentar os fatos. Mostre-me uma novela fantástica sobre Tchernóbil. Não há! E nem haverá! Garanto. Não haverá!”. “Chernobyl” prova o contrário. Faz isso combinando esse empreendimento de “anotar”, de documentar os fatos relativos à tragédia, indo das disputas no interior do aparato estatal soviético às consequências sofridas por pessoas ordinárias, com uma narrativa ficcional envolvente e dramaticamente poderosa, que se apropria de elementos do thriller político e mesmo do horror.

A suposta incapacidade da ficção de apreender Tchernóbil remete a alegações semelhantes sobre a relação do holocausto judaico com a arte. Seguindo essa analogia, enquanto “Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear” poderia ser considerado um equivalente (guardando suas especificidades literárias) ao documentário “Shoah” (1985), de Claude Lanzmann, com sua sucessão de depoimentos de sobreviventes, “Chernobyl” estaria mais próximo de um drama como “O Pianista” (2002), de Roman Polanski, na forma como articula o documental e o ficcional sem prejuízos significativos para qualquer um dos dois campos.

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