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O Sequestro (1981)

O Sequestro (1981)

Cinema policial mordaz e debochado

Wallace Andrioli - 21 de março de 2019

Baseado no sequestro real do menino Carlinhos, ocorrido no Rio de Janeiro em 1973, “O Sequestro” (1981), de Victor Di Mello, tem muito pouco interesse em desvendar os mistérios por trás desse crime, que gerou grande repercussão sobretudo na imprensa sensacionalista da época. Ainda que a narrativa seja centrada nos policiais civis responsáveis pelo caso – o delegado Marcondes (Jorge Dória) e os investigadores Argola (Milton Moraes) e Vilarinho (Carlo Mossy) –, o objetivo principal do filme é criticar, com mordacidade impressionante, os vícios que permeiam a atuação desses agentes públicos.

Há uma atmosfera de troça com a polícia em todo o filme e os primeiros minutos são emblemáticos disso. De plantão na delegacia, Argola e Vilarinho recebem um grupo de marginais sociais (usuários de drogas e travestis prostitutas) capturados nas ruas. Os primeiros são tratados com truculência e encarcerados. As segundas, extorquidas e ameaçadas. Pouco depois, os dois personagens ficam sabendo, por meio de um telefonema, do sequestro de um garoto de dez anos no bairro de Santa Teresa, sendo que até a imprensa já havia divulgado a história. Os policiais são os últimos a estarem a par dos acontecimentos, para os quais terão que buscar respostas.

Ao longo de “O Sequestro”, a condução da investigação se dá como uma sucessão de trapalhadas, levando, por exemplo, a conclusões descabidas a partir de uma análise pericial canhestra do bilhete deixado pelos sequestradores e à tortura de uma mulher em nada relacionada ao caso e à prisão de seu marido, velho cadeirante homônimo de um perigoso bandido da Baixada Fluminense. Di Mello e os roteiristas José Louzeiro e Valério Meinel também explicitam a violência policial (a cena de tortura é bastante forte, com a personagem sendo seviciada com um cassetete e submetida a choques elétricos na vagina) e as relações espúrias de agentes e delegados com a imprensa “marrom” e com o jogo do bicho.

O cinema policial brasileiro da segunda metade da década de 1970 já vinha fazendo denuncias semelhantes, tanto pela chave irônica – como em “Eu Matei Lúcio Flávio” (1979), de Antonio Calmon –, quanto pela seriedade dramática – casos de “Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia” (1977), de Hector Babenco (baseado em livro de Louzeiro), e “República dos Assassinos” (1979), de Miguel Faria Jr. No entanto, “O Sequestro” vai um pouco além ao não fazer concessões nessa representação negativa da polícia. Enquanto “Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia”, lidando com o tema dos esquadrões da morte, ressalta a existência de profissionais de segurança pública sérios, que combatem diligentemente a corrupção nesse meio, o filme de Di Mello soa debochado mesmo quando faz um comentário semelhante. Em seus créditos finais, “O Sequestro” é dedicado a Frank Serpico, policial estadunidense biografado alguns anos antes, num icônico filme de Sidney Lumet.

Não resta, portanto, pedra sobre pedra no retrato que Di Mello, Louzeiro e Meinel pintam da polícia do Rio de Janeiro (e do Brasil, por extensão). O final de “O Sequestro” é demolidor nesse sentido. Envolvido com o sequestro, Marcondes é confrontado por Argola e acaba morrendo do coração, deixando sobre sua mesa a parte do resgate que embolsaria. Seu até então subordinado não só fica com o dinheiro, como liga para o secretário se segurança (um general) e é nomeado por ele delegado. Em conversa posterior com Vilarinho, Argola relata o ocorrido como quem o faz a um amigo, mas, em seguida, assume postura esperada do cargo que agora detém e diz, num misto de soberba e deboche: “Outra coisa Seu Vilarinho, sua excelência disse que por causa dos meus bons serviços vai interceder junto ao governador e me nomear titular dessa delegacia. Então já sabe, de hoje em diante é Doutor Argola! E tem mais, Seu Vilarinho, eu quero muito respeito aqui dentro! E outra coisa, vê se para de correr atrás de viado na Lapa e tomar dinheiro de travesti! Não quero mais encrenca na minha delegacia! Ouviu bem? Porra!”.

Impressiona a ousadia de “O Sequestro” considerando que a legislação censória utilizada pela ditadura militar proibia representações negativas das forças policiais. Di Mello e os roteiristas, no entanto, souberam muito bem aproveitar o momento de abertura política (e flexibilização da Censura) em que o filme foi realizado. Não à toa, o único corte determinado pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão responsável por exercer esse tipo de controle sobre a produção artística no período, foi de uma cena em que Vilarinho mantém relação sexual com uma travesti. No início do último governo militar, a ditadura abria, mas se mantinha como fiscal da moral e dos bons costumes.

O único ponto fraco de “O Sequestro” é a participação de Helena Ramos como a mãe do garoto sequestrado. Atriz conhecida na época por participar de inúmeros dramas e comédias eróticas, Ramos vive aqui uma personagem sem muita razão de ser, cujo único momento de destaque soa como puro exploitation: enquanto aguarda para prestar depoimento à polícia, ela surge num compilado de cenas de nudez, correndo em câmera lenta pela praia ao encontro de seus muitos amantes. É a forma encontrada pelo diretor para apresentar a mulher como ninfomaníaca. Provavelmente existiam caminhos mais orgânicos à narrativa para isso.

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