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1922

1922

Matheus Fiore - 25 de outubro de 2017

A mais nova adaptação da Netflix para uma obra do cultuado Stephen King é 1922. Baseado em obra literária homônima, o filme conta a história da família James: o pai, Wilfred (Thomas Jane) é um fazendeiro orgulhoso de sua terra, vivendo em função dela e de sua família, composta por seu filho Henry (Dylan Schmid) e Arlette (Molly Parker). Diferente de Wilfred, sua esposa já não demonstra o mesmo apreço pela vida no campo, e deixa claro seu desejo de vender a fazenda, separar sua parte do dinheiro e abrir um negócio na cidade grande. Insatisfeito e irredutível, Wilfred manipula seu filho para que, juntos, os dois matem Arlette e continuem vivendo na adorada fazenda.

Por meio dos desdobramentos da história, o diretor e roteirista Zak Hilditch (As Horas Finais) transforma sua trama em uma análise sobre ganância, culpa e vingança. Enquanto vemos a sede por dinheiro de Wilfred o consumir e desgastar sua relação com Henry, a culpa pelo assassinato de Arlette aos poucos transforma os personagens, que não conseguem mais viver tranquilamente. A casa dos dois se transforma numa alegoria para a estrutura da família, e aos poucos começa a ruir, com problemas de encanamento, infiltrações e até infestação de ratos – que, numa boa tacada de Hilditch, funcionam como manifestação da culpa.

Imagem de 1922 que traz o protagonista fumando seu cachimbo na varanda de casa com uma feição pensativa.

Se os roedores que invadem o lar dos James simbolizam a culpa que persegue Wilfred, é inteligente a forma como a quantidade de ratos cresce exponencialmente ao longo da projeção. Se no início há um rato aqui e outro ali, quando o personagem não consegue mais conviver com seus erros, há uma verdadeira infestação, até chegar ao ponto em que os ratos estão presentes em qualquer ambiente no qual Wilfred vá. Por outro lado, a culpa não é tão bem trabalhada em seu filho, que depende muito de diálogos de sua namorada com seu pai para dizer ao público que o rapaz está transformado. Quando há a chance de demonstrar algum impacto, a atuação de Schmid decepciona pela falta de intensidade.

Thomas Jane, por outro lado, é um espetáculo. Encarnando perfeitamente o clássico pai de família tradicional e interiorano, o sotaque e as feições brutas transformam o ator, que consegue exprimir crueldade e inteligência pela frieza constante em qualquer diálogo ou atitude. A culpa também influencia em sua feição, que passa a ter sobrancelhas que, pela inclinação, sugerem sua angústia ao longo da projeção. Já Molly Parker não encontra tanto espaço quando viva, mas suas aparições para assombrar os familiares que a traíram são engrandecidas pelo trabalho de maquiagem e efeitos visuais, que criam uma figura não fantasmagórica, mas apodrecida, mórbida.

A construção do cenário também é feita com capricho: a fazenda, que inicialmente tem uma paleta de cores saturada e ganha uma luz dourada que imprime vida ao cenário, mais tarde passa a ser fotografada com uma iluminação gélida, ao passo que há, também, uma mudança na estação – 1922 começa no verão e termina no inverno. Com isso, todo o cenário (casa e fazenda) acompanham as mudanças de tom que permeiam a vida de Wilfred e Henry após o crime cometido. Com o passar da projeção, as sombras engolem cada vez mais os personagens, mostrando como uma escuridão sinistra (e sobrenatural) toma conta da fazenda.Imagem de 1922 que traz o protagonista num cenário pouco iluminado e com uma feição de medo.

Se como diretor, Hilditch é competente, como roteirista seu trabalho confuso acaba prejudicando o andamento da obra. Nenhum dos temas é desenvolvido corretamente: o paralelo entre Henry e sua namorada e a história de Bonnie e Clyde, por exemplo, é interessantíssimo, mas subaproveitado ao ponto de tornar a conclusão do arco do casal frio, impedindo que haja maior impacto dramático por tentar transformar em trana principal algo que, até ali, sempre ficou em segundo plano.

1922 é um filme confuso, que encontra dificuldade em saltar da análise social para o terror sobrenatural, não criando um elo entre suas duas partes, o que torna a trama desengonçada e faz com que todos os elementos funcionem individualmente, mas não em unidade. Elementos interessantes, como o hábito de Wilfred de ler The House of the Seven Gables (obra que trata justamente de assuntos como bruxaria e culpa), acabam sendo inseridos com tanta sutileza que mal servem à narrativa, acabam sendo mais easter eggsMesmo assim, o saldo ainda é positivo: a Netflix entrega uma adaptação de Stephen King que transporta para o cinema a tensão típica de sua literatura.

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