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A Melhor Juventude

A Melhor Juventude

O pessoal acima da História

Wallace Andrioli - 4 de fevereiro de 2020

Os créditos iniciais das duas partes de “A Melhor Juventude” são acompanhados por canções significativas da época em que se passa a história (“The house of the rising sun”, do The Animals, e “Who wants to live forever”, do Queen) e por imagens de personagens e eventos políticos centrais desse período. Como grande afresco das vidas de um conjunto de homens e mulheres entre 1966 e 2003, o filme gera, então, a expectativa da presença destacada desses eventos históricos na narrativa. No entanto, o caminho seguido aqui pelo diretor Marco Tullio Giordana é o de uma espécie de recusa da História, ao menos em sua dimensão macro.

Nicola (Luigi Lo Cascio), por exemplo, que pode ser considerado o protagonista de fato de “A Melhor Juventude”, é visto em Turim em 1968, durante uma manifestação estudantil, ao lado de sua namorada Giulia (Sonia Bergamasco). Eles são presos, mas a narrativa imediatamente salta para o início da década de 1970. Os dois continuam militantes, ela mais que ele, há uma cena importante de confronto com a polícia, mas o icônico ano de 1968 foi deixado para trás, sem maior exploração dramática (bem como 1969, que, na Itália, foi até mais significativo politicamente, já que marco inicial dos chamados “anos de chumbo”).

Há outros exemplos. Giulia se torna parte do grupo revolucionário Brigadas Vermelhas, que em 1978 sequestrou e matou o ex-presidente italiano Aldo Moro. Mas justamente quando o filme chega na completa radicalização política da personagem e no ano do ocorrido, há outro salto, dessa vez para 1980. Matteo (Alessio Boni), irmão de Nicola e talvez a figura mais complexa de “A Melhor Juventude”, se torna policial e, na Roma de 1983, mantém relações com prostitutas enquanto também se envolve emocionalmente com a jovem Mirella (Maya Sansa). Às vésperas da devastadora epidemia de AIDS dos anos 1980, Matteo parece ser o vetor perfeito para Giordana trazer o tema para seu filme. Mais uma pista falsa: durante as celebrações do ano novo, o policial comete suicídio (numa sequência, aliás, muito bem construída, em que a melancolia do personagem emerge com uma força impressionante) e a doença sequer é mencionada ao longo do filme. A queda do comunismo no leste europeu, entre 1989 e 1991, tampouco aparece numa história que tem entre seus personagens principais homens e mulheres de esquerda.

O que se vê aqui, portanto, é uma suplantação da História pela vida cotidiana, pelos dramas familiares e afetos de uma família de classe média. Por vezes os grandes eventos políticos e econômicos intervêm nas vidas dos personagens, mas quase nunca a ponto de ressignificá-las totalmente. Frequentemente eles são ignorados, evitados pela narrativa. Nesse sentido, “A Melhor Juventude” é uma espécie de anti-“Forrest Gump” (1994). Na definição do historiador Robert Rosenstone, “A Melhor Juventude” não seria exatamente um filme histórico, mas um que usa a História como pano de fundo para o melodrama. Talvez seja mais adequado entendê-lo nessa relação com a micro-história, com como as pessoas vivenciam cotidianamente as mudanças ocorridas no âmbito macro, muitas vezes inclusive mantendo certa indiferença a elas.

Giordana também estabelece uma relação ambígua com o melodrama. O filme raramente recorre a grandes acontecimentos dramáticos, revelações e reviravoltas. Mas a estrutura de saga familiar e a opção recorrente do diretor por closes não só reforça o foco nas pessoas em detrimento do contexto histórico, como imprime no filme certa textura televisiva, folhetinesca. Inicialmente, essa característica pode incomodar, principalmente na primeira parte, que tem um desenvolvimento mais truncado. Mas, com o tempo, tanto ela se torna constituinte de uma proposta estética e dramática coesa quanto Giordana se solta um pouco mais, arriscando outras composições que tornam “A Melhor Juventude” visualmente mais exuberante.

Ao fim, emerge uma reflexão agridoce sobre o envelhecimento e a quantidade de tempo necessária para se contar a história de uma vida. Giordana faz uso de longas seis horas para tal, mas que se revelam menos cansativas que o esperado em razão de sua eficiência na produção de empatia. A atenção dispensada aos afetos de seus personagens imprime uma fluidez admirável numa narrativa que se desenvolve com paciência, sem precisar acelerar para fazer caber em si acontecimentos de um amplo recorte temporal. Ver “A Melhor Juventude” é uma experiência mais prazerosa que exaustiva.

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