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A Mulher na Janela

A Mulher na Janela

A imagem vazia

Nicholas Correa - 14 de junho de 2021

Ao assistir A Mulher na Janela nos deparamos logo de cara com suas fontes de referência mais óbvias. Na trama adaptada do livro homônimo de A. J. Finn, a personagem de Anna Fox (Amy Adams), presa no seu apartamento com agorafobia, testemunha um assassinato ocorrido na janela do prédio vizinho; a personagem também não é confiável dada sua medicação forte junto com o abuso de álcool. Tudo na narrativa está em um território dramático familiar e o filme não parece fazer questão de esconder isso. Inclusive, para não deixar dúvidas que trata-se de uma homenagem ou um pastiche de Hitchcock, Joe Wright trata de inserir uma cena de Janela Indiscreta passando em uma televisão bem no início da projeção. O exagero, a tônica farsesca e até mesmo alguns planos com o foco dividido também nos remete à Brian De Palma, ele mesmo um cineasta formalista aos moldes de Hitchcock. Logo é preciso discernir algumas coisas, o tema de A Mulher na Janela parece ser não só os problemas de subjetividade de sua personagem, mas também todo um modelo de cinema. Mas no seio dessas referências estão alguns problemas que o filme de Wright, das duas possibilidades, ou preferiu não dar muita atenção ou não atendeu devido à sua produção conturbada.

Em um caso de um filme que sofre uma interferência de estúdios, passando por refilmagens, testes de audiência, é difícil apontar com precisão a origem de certas decisões dramáticas e formais, embora se saiba que o filme de Wright, na versão que foi reprovada por audiências de teste, foi taxado de “confuso”. Olhando para o corte final talvez seja o caso de pensar que Wright realmente estava buscando algo voltado ao pitoresco, ou fazendo uma cópia “imperfeita”, um filme em frustração diante do modelo exemplar. E até um certo ponto o filme atende a esse impulso, a tônica artificial de A Mulher na Janela é patente, seja na iluminação exagerada, nas cores berrantes ou na computação gráfica. Mas o fascínio e a fantasmagoria das imagens que dava o norte formal para Hitchcock e De Palma parece ausente aqui. É verdade que o filme também coloca motivos visuais metalinguísticos, como as telas da TV ou do celular, mas estas parecem nos direcionar de volta às imagens do filme de uma maneira que indica apenas a um vazio. Em algum momento da produção as imagens passaram a se perder na sua própria vacuidade.

O aparato formal de Joe Wright antes de tudo deixa tudo às claras, existe um regime de hipervisibilidade que a iluminação atende junto ao CGI, ainda que os dois possuam algo de pitoresco. Ao mesmo tempo que a personagem de Adams é levada a questionar o que vê em todos os instantes, o campo visual do filme dificilmente poderia ser mais limpo e nítido. Se a paranoia da personagem é de alguma maneira aludida na forma do filme, ela se dá por essa característica estranha das imagens e pelo ritmo a jato em que elas chegam a nós, a cadência do filme é frenética até nos seus momentos mais casuais. Mas admitir essa hipótese seria pensar que as operações formais do filme servem uma função psicológica no filme e não puramente referencial. Nisso chegamos no que parece ser o impasse fundamental do filme, a sua indecisão sobre o que motiva aquelas imagens em primeiro lugar. 

Em A Mulher na Janela existem dois impulsos conflitantes, o primeiro que diz respeito às suas premissas maneiristas e o segundo que fala de um lugar psicológico das formas. Para cada tentativa de tornar as imagens vagas, relativas e até mesmo banais dentro de um modelo de referências, existe um lado psicológico e emocional que tenta agir como um contrapeso. Por um lado existe uma força que tenta levar o filme à abstração de seu modelo de cinema e por outro existe uma necessidade de dar o “peso devido” às coisas. O filme basicamente se ocupa de jogar motivos visuais óbvios uns contra os outros e novamente os tornando vazios; como na cena em que Adams “vê” ela mesma conversando com a personagem de Julianne Moore pelo enquadramento de uma porta, com uma personagem aparecendo e desaparecendo cada vez que a câmera se move. São motivos visuais que entram em conflito, imagens que se debatem ao invés de possuir um mistério ou algo insondável em sua representação individual. Não que isso por si só seja um problema, mas se a fascinação com o significado ambíguo no seio da representação não é o foco aqui, justamente por haver um impulso que quer desconstruir a própria lógica que estrutura um regime de imagens, o filme tenta compensar a “falta” psicológica e escopofílica de alguma maneira. Compensação essa que chega no contexto do luto e do trauma da personagem de Amy Adams e na tônica absolutamente séria de sua performance. O resultado é uma obra que se frustra o tempo todo, seus elementos se acotovelam constantemente e deixam tudo mais canhestro do que propriamente interessante.

Essa contradição dificilmente pode ser explicada no contexto do desenvolvimento conturbado do filme, que pode muito bem ter podado várias de suas intenções originais. Mas na maneira em que A Mulher na Janela foi finalizado ele se assemelha mais a um exercício de citações pobres e de gratificações lúdicas fáceis do que qualquer outra coisa. É injusto falar em fetiche como algo negativo por si só em um filme de citação como os de De Palma, seria negar o que há de mais interessante em uma obra do gênero. Mas o prazer pela citação por si só também não vai muito longe sem uma motivação ou inflexão formal mais trabalhada ou provocadora, quaisquer que sejam suas naturezas. Por mais que o filme insinue caminhos interessantes, a sensação de potencial desperdiçado é maior que sua fraca psicologia e seu prazer iconoclasta.

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