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A Turba (1928)

A Turba (1928)

A América e o sonho de se destacar no meio da multidão

Michel Gutwilen - 11 de julho de 2022

A câmera desce da bandeira norte-americana no exterior de uma casa comum para as celebrações na rua do Dia da Independência norte-americano. Porém, há um acontecimento mais importante naquele dia: o nascimento do protagonista John Sims. Assim, desde seu início, A Turba (The Crowd) já é movido por uma dicotomia entre o e seu papel na sociedade. Ao dar menos atenção para a festa coletiva na rua e cortar para o interior do lar, acompanhando o parto, Vidor mostra sua filiação naquele momento. Seria Sims um menino especial, por ter nascido no 4º de Julho de 1900, na virada do século? O pai, pelo menos, promete que vai dar todas as chances no mundo para ele. 

Doze anos se passam em uma elipse e os intertítulos fazem uma brincadeira que Sims já recitava poesia, tocava piano e participava do coral, tal como os ex-presidentes Lincoln e Washington, com o filme brincando novamente uma certa predestinação para a grandeza. Contudo, a vida tinha outros planos para ele: uma ambulância chega em sua casa com uma maca e ele deve atravessar a multidão de curiosos que se amontoa para descobrir o que aconteceu. Novamente, o filme se move do exterior para o interior, mostrando que nada é exatamente privado na sociedade, e neste momento King Vidor posiciona a câmera em cima das escadas, enquanto a multidão se aglomera no interior do plano, com o menino devendo subí-las. Em uma lenta sequência que vai trabalhando o drama pela dilatação do tempo, a travessia demorada segura cada vez mais a tensão por existir enquanto um limbo. Sims sabe que aquele momento da escada é uma subida inevitável para a descoberta da tragédia de que ele havia virado órfão. Teria isso diminuído sua vontade de ser destinado à grandeza?

Nova elipse e agora chegamos aos 21 anos e com isso a hora de ir para cidade. Em primeiro plano, vemos sua figura em um barco e, ao fundo, os arranha-céus de Nova York. Como os intertítulos indicam, tal qual todo rapaz de sua idade, ele acha que a cidade irá girar em torno dele. Em um plano médio, James Murray (intérprete de Sims) oferece um rosto sonhador que brilha em direção às possibilidades do extraplano, até chegar um estranho dizendo para ele que “você deve ser bom na cidade se quiser vencer a multidão”. Basicamente, este é o mote inicial de A Turba e a verdade que por muito tempo Sims acreditará, até ser desconstruída no fim. 

O que King Vidor irá oferecer nos minutos seguintes da chegada é uma possível resposta se Sims havia vencido a multidão. Em uma das sequências mais memoráveis do Cinema Mudo, Vidor apresenta Nova York, mostrando-a como um fluxo imparável, uma coletividade que não deixa enxergar o individual. São massas de pessoas e carros passando umas em cima das outras, o que é mostrado por uma sobreposição. Planos gerais e de uma visão superior evidenciam os prédios simétricos e a grande quantidade de carros, barcos e fumaça produzida, mas Vidor também coloca perto a câmera perto do chão e, em contra plongée, mira para o alto dos prédios, que sob essa visão soam ameaçadores e sufocantes, estendendo a cidade tanto horizontalmente quanto verticalmente. Eis que a câmera sobe em direção a um desses edifícios e adentra em uma das janelas, com um corte revelando um plano que certamente viria inspirar Orson Welles mais de 30 anos depois em O Processo. Uma grande sala, com mesas e indivíduos sentados dispostos simetricamente, trabalhando como máquinas. Então, a câmera se aproxima mais ainda e chega à mesa do protagonista. Pergunta respondida: ele foi assimilado pela multidão.

Inclusive, pior do que ter sua individualidade sufocada pela lógica mecânica da metrópole, é justamente viver alienado com relação a isso. Totalmente lobotomizado pelos hábitos comuns, apenas mais um no meio da multidão, Sims é incapaz de perceber sua condição e ainda se acha predestinado a algo, melhor do que todos os outros. Com um certo cinismo irônico, Vidor vai oferecendo sutilmente como a visão de seu protagonista é enganosa. Quando seu amigo Bert lhe convida para um encontro duplo e eles vão buscar as garotas em seus empregos, vemos antes outros homens buscando seus respectivos pares, quase como um movimento fordista de produção, até chegar na vez de Sims, mostrando que ele é parte de um ritual que nem ele percebe que faz parte. 

O encontro com Mary se segue e agora eles estão no 2º andar de um ônibus de rua, no qual, demonstrando soberba, Sims faz um comentário maldoso sobre o quão ridículas são aquelas pessoas andando lá embaixo, além de humilhar um palhaço ao dizer que apostava que seu pai acharia que ele seria presidente. Não só pela figura do palhaço que se ressignificará no ato final de A Turba, mas a ironia deste comentário reside em ele não perceber que seu pai também esperava um grande futuro para ele e sua realidade é a de um cidadão comum. Novamente ironizando seu protagonista, quando momentos depois eles chegam ao parque de diversões e, em uma das atrações, Sims se depara com um tableau vivant da pintura Washington Crossing the Delaware. Pois este se mostra o máximo que Sims chegará da posição de presidenciável na vida.

Ainda no parque de diversões, há um momento visual que reforça a lógica da ausência de privacidade diante da cidade, que é quando Sims vai beijar Mary, em um túnel escuro do amor e, logo em seguida, este se abre de surpresa para que uma plateia vejam todos os casais em sua intimidade. Já na volta do parque, no metrô, Sims avista uma propaganda sobre venda de móveis para a casa própria e imediatamente ele pede Mary em casamento. Ou seja, nem este gesto de amor é uma verdadeira liberdade individual, mas um pensamento conduzido inconscientemente pela própria lógica do consumo, do marketing

Deste modo, durante boa parte da trama, Vidor vai usando do plano (Sims) e contraplano (outros homens) para mostrar como o sentimento de Sims sobre ser único no mundo é na verdade uma mentira ilusória. Por exemplo, isso acontece quando ele está se preparando diante do espelho para a noite de núpcias e, outros homens mais velhos riem dele, mostrando que já passaram por isso. Igualmente, quando ele se acha único por estar prestes a virar pai e, no hospital, se depara com vários homens sentados no banco também esperando. Ou ainda quando ele entra na fila de emprego e pede para furar, por ter mulher e filha pequena, até ser respondido que quase todos na fila também possuem.

Portanto, o grande caminho de A Turba é justamente fazer uma revolução interna em Sims: não se trata de a vida ser sobre se destacar no meio da multidão, tampouco ser alienado dentro dela, mas conquistar novamente sua individualidade dentro dela, voltando-se para a família. Afinal, o american dream é uma mentira, não há como ter grandes conquistas, o capitalismo falhou. Então, que pelo menos seja possível ter uma vida digna voltada para dentro do individual, com a própria família. Quando Vidor filma Sims e Mary em lua de mel, seus atores fecham os olhos em puro estado de graça, revelando a honestidade do amor que está em harmonia com as águas da cachoeira, levando  a crer que não há mais nada necessário no mundo para além daquilo. 

No entanto, a trajetória da narrativa não é só bucólica, pois quando o casal passa a viver junto na cidade, a vida cotidiana se mostra um jogo de vai-e-vem entre os altos e baixos, no qual o amor vai sempre sendo posto à prova por dificuldades do convívio. Entre as situações colocadas por A Turba, seu roteiro mistura tanto o naturalismo cotidiano de brigas geradas por pequenas situações, como móveis quebrados, quanto também o melodrama, ao envolver grandes tragédias transformadoras como o atropelamento da filha e toda a sequência em que Sims surta com a população por não fazer silêncio (sendo ignorado) e a tentativa de suicídio (interrompida pelo filho). Através do contraste com a desgraça que, quando aqueles personagens decidem passar por cima de todos os problemas para se amarem, a verdade do sentimento se revela. 

No fim, a grande tragédia irônica se revela como um paralelismo pois se antes Sims zombava do palhaço que via na rua, agora é ele que, sob a imposição do desemprego, se torna um também. Só que, mais consciente do que nunca, ele aceita tentar recomeçar do zero, enxergando com toda a dignidade do mundo aquela profissão. E assim, o filme se fecha, se afastando de Sims e Mary individualizados na plateia para enquadrar toda aquela multidão de pessoas. Ressignificando o significado anteriormente já apresentado pelo filme de uma multidão, agora seu valor não mais é de sufocamento, mas sim de acolhimento. Fica a questão: será que realmente há vitória ou, no fim das contas, é tudo pão-e-circo?

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