Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Ad Astra: Rumo às Estrelas

Ad Astra: Rumo às Estrelas

“Não deixaremos de explorar e, ao término da nossa exploração, chegaremos ao ponto de partida e conheceremos esse lugar pela primeira vez”

Matheus Fiore - 24 de setembro de 2019

O texto a seguir contém spoilers de “Ad Astra”.

Há ideias trabalhadas ao longo da filmografia de James Gray que são sempre exploradas de formas variadas. Relações familiares (principalmente as paternas), por exemplo, estão quase sempre conectadas ao mote principal das obras. O primeiro filme de Gray, “Fuga Para Odessa”, tem, na trajetória trágica da família de Joshua e na incomunicabilidade entre ele e seu pai, o coração da trama. Já em “Os Donos da Noite” a tragédia está no fato de parecer inevitável que um protagonista siga o rumo de seu pai, um importante oficial da força policial de Nova Iorque. Os primeiros filmes de Gray – principalmente os dois citados – são extremamente pessimistas em suas propostas. Entretanto, aos poucos, o cineasta americano foi criando histórias com personagens mais bem sucedidos, transformação que foi vista pela primeira vez em “Era Uma Vez em Nova Iorque” e que culminou com a que é, até então, sua obra-prima: “Z: A Cidade Perdida“.

“Z”, porém, ainda possui uma conclusão agridoce, por trazer um protagonista que precisa superar não só os limites morais e culturais da sociedade, mas também os limites espaciais e temporais da própria realidade. Percy Fawcett (Charlie Hunnam) vive um explorador que quer desbravar um mundo para encontrar algo que parece intangível, inalcançável e para o qual a transcendência como único caminho. Qual seria, então, o próximo passo de uma filmografia de protagonistas fadados a serem derrotados por sistemas, sejam eles estruturas estatais, ou sociais, ou a própria realidade? Para Gray, que desde o início da carreira tem feito uma espécie de estudo de facetas do cinema – o romance clássico, o drama policial, a aventura, o filme de máfia… – esse próximo passo foi a ficção-científica.

Roy McBride (Brad Pitt) é um astronauta marcado pela perda do pai, também astronauta e desaparecido durante uma expedição rumo a Netuno, há mais de uma década. Roy vive em função de manter o legado do pai vivo. Ele quer explorar o espaço, mas acaba vendo nisso uma forma não só de se isolar do mundo – seu relacionamento com sua esposa parece ter seus dias contados -, mas também de se aproximar ao máximo dos últimos vestígios que seu pai deixou pela galáxia. É a clássica jornada do explorador que encontra nas aventuras pelo mundo – no caso, pelo universo – razões para viver.

Surge, então, a oportunidade: a agência espacial estatal americana recebe sinais que indicam que o pai de Roy, Clifford McBride (Tommy Lee Jones), pode ainda estar vivo. Roy, então, parte para Netuno em busca de seu pai. O pai de quem não só sente falta, como também, de certa forma, desconhece, pois, assim como Roy, Clifford era um sujeito que vivia mais para o trabalho do que para a família (“I’ll live driven by my quest”, diz o personagem). Ao passo que busca seu pai, porém, Roy também se distancia da civilização, que aqui se expande para a Lua e para Marte, fazendo do distanciamento da sociedade ocidental algo que demanda uma viagem ainda mais longa.

A escolha de Roy McBride para capitanear a missão é, claro, influenciada por sua ligação sanguínea com Clifford. Entretanto, o roteiro estabelece outro ponto relevante: Roy é um profissional frio e mecânico. É um personagem que esconde as emoções, mesmo diante de um acidente que põe sua vida em risco. Quando se despede de sua esposa antes da última missão, por exemplo, a personagem sequer está no campo de foco da câmera, como se Roy não conseguisse enxergar nada que estivesse além de sua busca pelos limites do desconhecido. Está escolhido, portanto, o herói americano clássico, não só por seus atributos físicos – como o próprio Gray disse, há alguém visualmente mais tipicamente americano que Brad Pitt? –, como por sua postura de desbravador inquebrável e livre de emoções.

O que vemos em “Ad Astra”, porém, é a constante desconstrução desse mito do herói. Cada segmento da narrativa não só descama o heroísmo do personagem – mesmo com “boas intenções”, McBride toma decisões um tanto quanto frias e cruéis –, como também mostra que toda a sua “dureza” é, na realidade, fruto de uma persona criada pelo próprio astronauta para mascarar a cicatriz emocional gerada pela ausência da figura paterna. Não à toa, Roy está, desde sua introdução na abertura do longa, à deriva ou em queda livre. O lento distanciamento da sociedade, que ocorre pelo fato de Roy ir aos confins da galáxia para executar sua missão, expõe pouco a pouco o coração ferido do herói americano.

Com isso, Gray esculpe uma narrativa que mostra, assim como nas outras obras, um personagem em conflito com um sistema, mas que, no caso, nos permite ver o personagem se libertando desse sistema. É, de certa forma, uma leitura da ideia do übermensch de Nietzsche, tal qual fez Kubrick em “2001: Uma Odisséia no Espaço”. Kubrick, porém, trabalhou a ideia em uma narrativa mais fantástica, mais afeita ao místico, à vida extraterrestre, e à própria transcendência que Gray trabalhou em “Z”. O que vemos em “Ad Astra” é um personagem que passa pelos mesmos estágios, mas com os pés no chão. A transformação pela qual Roy McBride passa é, mesmo que palpável, apenas em sua essência, e não física, como acontece com o astronauta que se torna um novo ser na obra de Kubrick. O retorno de Roy apresenta um personagem inteiramente novo, livre das amaras de outrora e pronto para começar de novo. Agora, como herói que se tornou ao executar a missão que salvou o planeta.

Mas Roy é um sujeito que vive em constante depressão, e sua viagem a Netuno se torna, por isso, uma viagem dentro de sua própria psique. Não por acaso Grey escolheu justamente o mais azul dos planetas do sistema solar como ponto final da viagem do astronauta. O clímax inteiro é banhado pelo azul; é um cenário que expõe o protagonista ao seu maior temor, que é o reencontro com seu pai, ao passo que também expõe, pelas cores, ângulos e cenários, sua situação psicológica: solidão e tristeza. Também não é acidental que Roy precise viajar ao lugar mais distante que a humanidade já alcançou justamente para conhecer a si mesmo, e esse fato faz com que a jornada do explorador e a jornada do ser humano se entrelacem.

Gray faz uma escolha bastante interessante na forma como conduz as múltiplas missões de Roy McBride. O uso da narração em off enriquece nosso conhecimento quanto aos pensamentos do astronauta. Mesmo que Roy passe a fantasiar com um reencontro com seu pai, que, mesmo à distância, ditou todo o seu rumo de vida – assim como Clifford, Roy é um mau companheiro e vive dedicado ao mesmo trabalho que o pai –, conscientemente, o personagem parece agir motivado apenas pelo espírito aventureiro. Há uma relação entre explorador e desconhecido que foi trabalhada também em “Z”. Mas, em “Ad Astra”, Grey não insere esse conflito como única proposta temática da narrativa, já que tem também como foco a relação com o pai e a desconstrução do protagonista. Ou seja, nesse sentido, é um trabalho oposto ao de “Z”, que parte da relação paterna justamente para tratar da relação do explorador com o mistério.

O estudo da relação com o pai e a toxicidade da idolatria desmedida de figuras paternas é um tema antigo para Gray, mas aqui ganha novas camadas de análise. Se, em boa parte de suas obras, a figura paterna, mesmo que prejudicial no desenvolvimento do protagonista, era sempre vista como respeito ou referência, em “Ad Astra” a ideia é desmantelar essa mitificação. Em “Z”, a obra de 2016, o pai de Percy Fawcett não é uma figura fisicamente presente, mas orienta todas as escolhas pessoais e profissionais do militar e explorador. Claro, o mesmo acontece em “Ad Astra”, mas aqui, pelo fato de a análise da relação entre pai e filho ser o tema central, há um “corte de cordão umbilical”, fazendo da jornada de Roy McBride um fechamento de ciclo e uma forma de ingresso a uma nova fase, mais independente e livre da mitificação heróica a ele imposta. Roy busca não só igualar os feitos de seu genitor, como também encontrar essa figura em forma material.

Talvez tenha sido T. S. Eliot quem melhor definiu a trajetória de um personagem como Roy McBride. “Não deixaremos de explorar e, ao término da nossa exploração, chegaremos ao ponto de partida e conheceremos esse lugar pela primeira vez”. A McBride, resta dar a volta na galáxia para resolver suas pendências pessoais, abandonar os conceitos pré-estabelecidos de heroísmo da sociedade onde cresceu e se encontrar, sabendo que, caso escolha retornar, ele encontrará um novo mundo a ser explorado, já que este não poderia parar enquanto aguardava seu regresso.

Diferente da filmografia anterior de James Gray, “Ad Astra” mostra um personagem que não só supera o sistema que o subjuga, como também volta consagrado por seu feito para contar a história. Roy McBride  atravessa e supera tanto os limites impostos pela sociedade, que faziam do personagem um ser mais fechado, ríspido e mecânico, quanto os impostos pelo próprio pai, que fizeram dele um escravo do legado de Clifford McBride. Eis, então, o ser livre de características sociais e psicológicas pré-concebidas, que retorna para casa pronto para viver, no lugar onde sempre viveu, uma nova história, como se conhecesse seu lar pela primeira vez.

Topo ▲