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Adoráveis Mulheres

Adoráveis Mulheres

Em trânsito

Wallace Andrioli - 14 de dezembro de 2019

Talvez falte a Greta Gerwig em “Adoráveis Mulheres” a precisão revelada em “Lady Bird” (2017). A diretora e roteirista tenta fazer caber em pouco mais de duas horas de filme uma sucessão infindável de acontecimentos envolvendo a família March. Alguns deles se atropelam e por vezes o ritmo da narrativa se arrasta. Enquanto as irmãs Jo (Saoirse Ronan) e Amy (Florence Pugh) têm suas trajetórias bem desenvolvidas, outros personagens passeiam pela história, vivem dramas que deveriam ser significativos, mas que, entulhados no excesso fático do texto de Gerwig, acabam perdidos e desinteressantes. A relação de Beth (Eliza Scanlen) com uma família pobre vizinha e o casamento de Meg (Emma Watson) são exemplos disso.

“Lady Bird”, além de um delicado olhar para o amadurecimento de uma jovem, é um primor de concisão. “Adoráveis Mulheres” falha nesse último quesito, mas se aproxima do filme anterior de Gerwig no primeiro. No posicionamento de Jo perante o mundo a diretora e roteirista localiza a continuação de sua obra. A personagem guarda semelhanças consideráveis com suas equivalentes não só de “Lady Bird”, mas também de “Frances Ha” (2012), escrito e protagonizado por Gerwig. Garotas que se tornam mulheres, artistas, inquietas, em trânsito.

E Gerwig intensifica essa relação ao rearticular a estrutura narrativa criada por Louisa May Alcott e reproduzida nas adaptações fílmicas anteriores. Passado e presente se alternam nesse novo “Adoráveis Mulheres”, conforme Jo perde e depois reencontra sua paixão pela escrita literária. A transição entre as duas temporalidades é feita com elegância na montagem, ainda que as escolhas visuais de Gerwig para marcar suas diferenças soem, ao menos a princípio, óbvias demais: o passado, tornado idílico nas memórias de Jo, é, em geral, solar, mesmo com os momentos difíceis experimentados pela família March em decorrência da participação do patriarca (Bob Odenkirk) na Guerra Civil Americana; o presente, acinzentado, já que atravessado por crises (afetiva, criativa, familiar) da protagonista.

Mas Gerwig produz uma virada na reta final de “Adoráveis Mulheres” que não só torna tais escolhas mais orgânicas, como também aproxima a história, escrita no século XIX, do presente do filme. O passado visto na tela é uma concretização do livro escrito por Jo sobre sua família, também intitulado “Little Women”. Algo como o que acontece no recente “Dor e Glória” (2019), de Pedro Almodóvar, com o filme realizado pelo personagem de Antonio Banderas sobre a própria infância.

A idealização manifesta no contraste visual entre temporalidades passa então a fazer mais sentido. A presença excessiva e expressiva do sol nos flashbacks é, afinal, materialização ficcional do passado real. E o final clássico da narrativa de May Alcott, em que a protagonista se casa com seu professor de alemão (Louis Garrel) e abre uma escola se torna uma piada metalinguística, resultado de um agrado comercial da autora Jo ao seu editor (Tracy Letts).

Nesse início de século XXI, faz sentido percorrer o caminho inverso, desconstruir e reconfigurar o epílogo original. Esse movimento feito por Gerwig também pensa no mercado, num momento em que representatividade vende. Mas seu resultado traz uma bem-vinda coerência à trajetória de Jo. Autora de uma contemporaneidade bem mais possibilitadora às mulheres artistas que o contexto em que Alcott escreveu seu livro, Gerwig não precisou escolher, como sua protagonista, entre ser coerente e o apelo comercial. O casamento dessas duas alternativas é absolutamente harmônico em “Adoráveis Mulheres”.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2019. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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