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Amor Até as Cinzas

Amor Até as Cinzas

As diferentes prisões da condição humana

Matheus Fiore - 23 de abril de 2019

“Amor Até as Cinzas” é um filme de prisões. Prisões nas quais os personagens se encontram, conscientemente ou não. Prisões das quais tentam fugir ou para as quais tentam voltar. Prisões físicas, psicológicas e metafóricas. É uma obra na qual as pessoas, de alguma forma, estão presas a alguma coisa, seja à vida do passado, a um relacionamento que acabou, a uma dependência por poder ou algo do tipo. Jia Zhangke foca principalmente em duas dessas pessoas: a protagonista, Qiao, namorada de um influente líder do submundo do crime em uma região da China, e Bin, que é justamente esse mafioso.

O primeiro ato do filme estabelece a relação entre esse casal e o mundo. A tradição é algo apresentado como intransponível, algo que guia as vidas de todos os personagens. Uma estátua de uma figura religiosa, por exemplo, é posicionada entre dois personagens para evitar que eles briguem. Os rituais de despedida para os mortos também são filmados com carinho por Jia, reiterando o apego daquele mundo diegético com sua cultura. Qiao e Bin não vivem alheios a isso: há uma relação mútua de respeito e dependência entre eles, que também é influenciada pela tradição. Enquanto a protagonista precisa de Bin por ele lhe passar uma sensação de poder – afinal, ela está comprometida com o grande criminoso da região –, ele vê nela uma afirmação de seu poder, já que possui alguém que depende dele.

Para Qiao, o relacionamento parece ser uma porta para tirá-la da vida de um trabalhador comum. O plano de abertura de “Amor Até as Cinzas”, por exemplo, a mostra em um ônibus, juntamente a outros trabalhadores, em uma cena que a faz parecer uma cidadã comum – tudo o que ela não quer ser. Qiao parece presa ao desejo de ser mais do que uma cidadã comum, mas também parece presa ao amor que desenvolve por Bin. Esses dois sentimentos acabam sendo o norte da protagonista quando ela se vê livre após cinco anos na cadeia.

Inicialmente, o filme sugere que terá um foco apenas no relacionamento de Qiao e Bin e nessa disputa por poder, que, aliás, rende cenas engraçadas e extremamente importantes para desenvolver os personagens. Uma delas é quando Qiao mobiliza toda a equipe de seu amado para levá-la a um restaurante distante, apenas para, segundos depois, mudar de ideia. Aos poucos, notamos como a narrativa apenas parte desse relacionamento para abordar temas mais amplos. Qiao e Bin parecem ser apenas conduites utilizados por Zhangke para analisar como os relacionamentos são afetados pelo tempo e pelas transformações culturais do mundo.

“Amor Até as Cinzas” se passa em diversos momentos ao longo de aproximadamente quinze anos da vida do casal, e Zhangke sempre evidencia as diferenças de cada era. Se no primeiro terço da projeção, o casal passeando por paisagens naturais e tendo suas vidas norteadas pela tradição cultural eram duas das principais marcas da narrativa, aos poucos há uma transição que faz com que a tradição ceda lugar à tecnologia. No ato final, por exemplo, o mais comum é ver os personagens em planos abertos passeando por construções dos Jogos Olímpicos de Pequim, que mais parecem ruínas, vale ressaltar. Se antes o casal brincava com uma arma, posteriormente os vemos interagindo por meio de smartphones. Os personagens continuam prisioneiros de seus sonhos e desejos, mas, dessa vez, a modernidade ocupa uma posição relevante nesse universo.

Outra relação eficiente construída por Zhangke é a de seus personagens com o tempo. Nem Qiao nem Bin parecem aceitar bem as transformações pelas quais passam, e lidam de maneiras distintas com a realidade. Qiao tenta de qualquer maneira retroceder para voltar a viver a vida de outrora, enquanto Bin se torna um personagem melancólico por não ter mais o poder que tinha no passado. A fala “você perderá sua coroa”, proferida quando o casal é atacado, acaba se tornando uma profecia. São, assim como o leão e o tigre enjaulados na praça de uma das cidades por qual a protagonista passa, dois indivíduos que ainda não alcançaram a própria liberdade, justamente por acreditarem que ela vem por meio do reencontro com o passado – no caso de Bin, com seu desejo por poder.

Um fator interessante de “Amor Até as Cinzas” é como Zhangke filma Qiao ao longo da trama. Não são raras as cenas nas quais a protagonista é fotografada caminhando, como se estivesse sempre em movimento, sempre em busca de algo. Essa construção, futuramente, é contrastada com a situação na qual Bin se encontra, e faz com que os personagens se tornem praticamente antagônicos na forma que reagem ao mundo. Outra característica estética importante para estabelecer quando a personagem principal está no poder são as cenas nas quais a câmera a segue flutuando pelos cenários, algo bem contrastado com os momentos de baixa, quando Qiao parece não conseguir sequer estar centralizada no enquadramento.

O desafio inconsciente que Qiao deve superar é aceitar a insignificância de sua existência, algo que Zhangke evidencia numa linda cena, na qual ensaia reposicionar o filme em uma esfera mais cósmica, quando coloca em contraste os olhares da protagonista com um céu estrelado. “Amor Até as Cinzas” ressalta a superficialidade das relações na modernidade e faz com que seus personagens percebam isso de forma lenta e dolorosa.

Percebendo esse contraste entre os personagens e as mudanças do mundo, é fácil entender a melancolia que parece inerente a Qiao e Bin. São duas figuras saudosistas, que não souberam lidar com o fato de viverem em um mundo que mudou tanto em tão pouco tempo. São figuras que ainda tentam viver sob a lógica de eras passadas, enquanto o mundo possui novas demandas, novas estruturas e até mesmo uma nova realidade.

Tentando dobrar esses avanços e mutações para que se encaixem no mundo que idealizam, os personagens acabam apenas criando mais amarras, e nada poderia representar isso melhor do que um plano de encerramento que nos mostra um dos personagens visto por uma tela de câmera de segurança; como se tivesse, na ânsia de reviver o passado, se tornado uma escravo dele, mesmo que utilize a tecnologia do futuro.

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