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Amor e Desamor (1966)

Amor e Desamor (1966)

Leonardo Villar brilha em drama existencial de Gerson Tavares

Igor Nolasco - 10 de julho de 2020

A alcunha “Bergman brasileiro” é comumente atribuída a Walter Hugo Khouri, autor de filmes como “Noite Vazia” (1964) e “Eu” (1987). Outro forte concorrente ao título, entretanto, seria o cineasta Gerson Tavares. Se Khouri tende a ser mais lembrado como o equivalente nacional do diretor sueco é porque os filmes de Tavares são menos vistos, estudados, debatidos e relembrados. Mesmo Khouri atualmente já não figura entre os cineastas brasileiros mais assistidos; Tavares, então, tem sua obra quase completamente relegada ao esquecimento.

Ambientado em Brasília, “Amor e Desamor” (1966) é a história de algumas horas na vida de um professor universitário (interpretado por Leonardo Villar), que convida para seu apartamento uma mulher casada (Leina Krespi) com quem inicialmente nutre uma relação de amizade. Essa dinâmica entre os dois toma outros rumos com o passar das horas, enquanto passado e presente do protagonista são justapostos.

Se não é a primeira vez que a cidade é objeto para a câmera de Tavares (vide o curta “A Capital do Século”, de 1959), o olhar aqui é de fora pra dentro: o filme parte de Brasília (e não à toa tem seus letreiros iniciais estampados sobre célebres monumentos arquitetônicos brasilienses) para os personagens. O Distrito Federal surge como um espaço desolado, vazio, solitário. Em seu curta de 1959, que documenta a construção da cidade, Tavares já não se mostra particularmente enfeitiçado por um pensamento de utopia, tendo um interesse na vida de quem migra para Brasília de outros estados visando melhores condições e nas condições de trabalho dos candangos responsáveis por levantar as paredes do futuro. “Amor e Desamor”, realizado sete anos depois, mostra que de fato não há utopia possível no Distrito Federal.

A impressão que fica da personagem de Krespi em sua primeira aparição é a de uma pessoa vazia, fútil, entediada com sua rotina burguesa. De certa forma, o tédio burguês é o ponto de partida do filme. Se para Gerson Tavares as perspectivas para os pobres em Brasília não são animadoras, o mesmo aplica-se aos ricos, de formas diferentes, não obstante igualmente pessimistas. Ao início do longa, Tavares explora a arquitetura da cidade com um olhar direcionado a esse sentimento de isolamento ante o espaço aberto, porém não tarde a mover a ação para o interior do apartamento do protagonista, que assim como os ambientes externos, não é aqui desprovido de significados.

A condução fílmica centrada nas duas personagens principais, o foco nos diálogos enquanto responsáveis por mover a narrativa e a economia de cenários evocam uma atmosfera teatral, o que é longe de ser algo ruim, sobretudo quando realizado de forma excepcional. Nesse sentido, as sequências regidas pelo diálogo entre as duas personagens-chave lembram o “Navalha na Carne” (1969) de Braz Chediak, que de forma similar desenrola sua ação quase completamente dentro de um apartamento. Chediak faz uma adaptação teatral de Plínio Marcos; Tavares, em uma história original de sua autoria, absorve influências do teatro e as exprime com um domínio louvável da linguagem cinematográfica no jeito em que compõe cada elemento de “Amor e Desamor”.

O professor universitário, a princípio monossilábico e tímido, logo mostra-se imerso em seus próprios conflitos; contido, mas não vazio. Nos momentos críticos, chega à explosão. Leonardo Villar entrega uma das melhores performances de sua carreira, possivelmente em pé de igualdade com seus papéis em “O Pagador de Promessas” (1962) e “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (1965). No filme de Tavares, interpreta um personagem bem distinto dos anteriores; é mais tridimensional, com mais nuances. Eventualmente sua história é desvelada para o espectador; seu passado com uma antiga namorada, a discussão acerca de paternidade que o separou dela, tudo isso o assombra e afeta a forma como ele vê e lida com o presente.

Destaque de “Amor e Desamor”, Villar está muito bem acompanhado por uma excelente Leina Krespi (que aqui encarna algo de Bette Davis, ao menos no físico e no olhar). Tavares sabe muito bem como deixar os atores trabalharem e tirar deles o seu melhor. O escopo temporal reduzido que abriga a ação e a decisão de situar o filme majoritariamente em um mesmo espaço não limitam os atores, pelo contrário, ressaltam suas qualidades e também as do cineasta. Nas vinhetas que são utilizadas para ilustrar o passado e o onírico, uma jovem Betty Faria também tem excelentes momentos, e talvez seja o espaço onde Tavares consegue exercitar com mais liberdade algumas composições sensoriais altamente criativas.

Existe nessa mise-en-scene estabelecida por Tavares uma ideia das duas mulheres enquanto duplos (não fisicamente, mas alegoricamente, sob os olhos do personagem de Villar), uma representando o passado, outra o presente, e ambas convergindo na mente do protagonista e na visão do espectador através de uma série de jogos de cena.

Passado e presente se alternam na mente do protagonista enquanto ele tenta fugir do primeiro se refugiando no segundo. Para além de Bergman, o trabalho de Tavares adquire aqui ecos de Alian Resnais, mas não se limita em parecer uma adaptação realocada dos cineastas supracitados, adquirindo seu próprio vigor estilístico que é demonstrado não apenas em “Amor e Desamor”, como também no posterior “Antes, o Verão”, de 1968. Possuindo em sua filmografia curtas excelentes, são esses dois longas, entretanto, que firmam Gerson Tavares como um diretor digno de figurar entre os grandes cineastas atuantes no cinema brasileiro sessentista.

Infelizmente, como comumente ocorre com os artistas brasileiros que não são validados pelo cânone internacional, Tavares é mais um entre tantos nomes esquecidos do cinema nacional. Um filme como “Amor e Desamor”, feito nos EUA ou em algum país da Europa ocidental, seria instantaneamente alçado ao patamar de clássico instantâneo e relançado ad infinitum em edições especiais. No Brasil, os filmes de Tavares só foram resgatados pelo interesse e pela boa vontade do professor e cineasta Rafael de Luna e de laboratórios da Universidade Federal Fluminense. A memória do cinema brasileiro ainda é muito frágil, e filmes que não atingem o patamar de canônicos estão sempre sob o risco do esquecimento e do desparecimento.

“Amor e Desamor”, em um plano fílmico, apresenta uma série de debates sobre relações, fracassos, recomeços, superficialidade, afetos e raiva. Em um plano extrafílmico, gera reflexões acerca da memória no cinema brasileiro. O espectador que der uma chance ao longa poderá se deparar com Leonardo Villar em seu apogeu e sobretudo com a qualidade genuína do cinema de Gerson Tavares.

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