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Annette

Annette

Quando a obra sai das mãos do autor e passa a pertencer ao mundo

Matheus Fiore - 26 de novembro de 2021
O texto a seguir contém spoilers de Annette.

Ainda antes dos créditos iniciais, Leos Carax já introduz um mecanismo de metalinguagem que alimenta toda sua obra. Vemos uma imagem sendo “regulada”, juntamente a um som abafado e o próprio diretor no estúdio, acompanhado por uma banda. Trata-se, como em outros trabalhos de Carax, de um filme que busca brincar com o próprio universo da obra e explora os limites extra-fílmicos de sua narrativa. A obra de fato só tem início quando o próprio autor ordena: “Então, vamos começar?”. 

Essa brincadeira permanece quando os atores principais, Adam Driver, Marion Cotillard e Simon Helberg dão as caras e cantam junto da própria banda que compõe a trilha. É, como fizera Varda em Visages, Villages, a exposição da farsa cinematográfica diante do olhar do espectador. Annette, então, desenvolve sua trama sobre a família de artistas enquanto Henry (Driver) se degrada e o filme, que acompanha sua perspectiva, segue de perto e mimetiza esse processo. Para contar essa história, Carax constrói uma mise-en-scene totalmente farsesca, na qual o tom de musical teatral é sustentado por quase toda a duração do filme.

É curioso que os momentos mais “realistas” do filme sejam justamente os de Henry apresentando seu show de stand-up comedy. Quando o filme nos leva para outros ambientes, como no lar do personagem ou em um passeio no iate da família, a estética teatral permanece. Carax não têm pudor de usar telões como fundo do campo e manter os cenários essencialmente teatrais, escurecidos e com elementos concentrados ao redor dos personagens. É um esforço para sustentar a narrativa de acordo com a visão de mundo um tanto quanto afetada de seu protagonista, que estende sua arte dos palcos para a vida.

Mas se vida e obra do personagem principal se misturam ao longo de Annette, é inevitável também que a obra acompanhe seu estado emocional. Conforme a trajetória de Henry vá adquirindo tons sombrios e macabros, a farsa vai se desfazendo ao passo que a percepção de mundo do protagonista é contagiada. Se antes os momentos musicais eram dedicados principalmente à vida pessoal, em dado momento, até os espetáculos de Henry se tornam cenas musicais com direito ao próprio público criticando sua arte em forma de música. 

O que se sobressai nessa confusão mental do protagonista é sua relação com sua filha. Para Carax, parece não haver arte/amor (ambas as ideias personificadas pela figura de Annette) sem envenenamento pelo mundo pós-mecenato. Henry ama Annette, mas também quer lucrar com sua arte, ao passo que sente culpa e angústia por fazê-lo. Carax abraça toda a complexidade de seu personagem, que comete atos terríveis e imperdoáveis, mas nunca é falso com seus sentimentos. É belíssimo ver como o cineasta percebe e abraça, como poucos diretores contemporâneos são capazes, as nuances do mundo e de suas criações.

Inclusive, Carax faz questão de que a humanidade de seus personagens se sobressaia mesmo diante da narrativa deliberadamente baseada na exposição da farsa de Annette como filme. Mesmo enquanto musical, Annette não é filmado como se espera de um exemplar do gênero. Os movimentos da câmera são bem lineares e gentis e a coreografia, quando existe, é contida. A fisicalidade de Driver, Cotillard e os demais é essencial para que a narrativa permaneça tendo como foco como os humanos se comportam e se sentem em um universo de mentira.

A grande sacada de Carax, ao meu ver, é aproveitar a destruição do filme juntamente à do protagonista apenas para que tenhamos o mesmo impacto que Henry ao conhecermos a verdadeira Annette. Se para nós, o choque é ver uma criança amadurecida por dores e traumas, para Henry, é ver que a menina era mais do que uma boneca. Ao mesmo tempo que o filme caminha para o fim enquanto se desfaz, a obra de Henry, sua própria filha, é finalizada, mas não mais pertence ao autor, e sim ao mundo.

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