Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Aos Pedaços

Aos Pedaços

Ruy Guerra dá sequência aos seus jogos de cena quasiteatrais

Igor Nolasco - 24 de setembro de 2020

Nos últimos anos, o cinema brasileiro vem sendo palco de uma proveitosa mistura. De um lado, novos cineastas de todo o país emplacam seus trabalhos, ganhando reconhecimento no Brasil e no exterior. De outro, veteranos seguem em atividade acrescentando novos projetos a filmografias iniciadas décadas atrás. É o caso de Ruy Guerra, 89 anos, oriundo da safra cinemanovista de realizadores. “Aos Pedaços”, seu novo longa, chegou ao público pelo 48º Festival de Gramado.

Partindo da premissa simples de acompanhar a angústia de um homem bígamo que acredita estar prestes a ser assassinado por uma de suas amantes, em termos de imagem o filme herda muito dos esforços mais recentes de Guerra. O cineasta, que começou no preto-e-branco por condição em longas como “Os Cafajestes” (1962) e “Os Fuzis” (1964), retornou a ele por opção em “Estorvo” (2000), e repete a fórmula agora em “Aos Pedaços”. Se esse uso do P&B enquanto escolha não é algo novo para o cineasta, há um alívio em constatar que ele não é feito de forma gratuita, e há um tratamento no jogo de luzes e sombras, brilho e contraste que faz com que o filtro contribua com a construção da imagem e da atmosfera que o diretor arquiteta, em detrimento de ser apenas uma sobreposição chapada e sem vida, como o ocorre recorrentemente em filmes contemporâneos que fetichizam a estilização P&B.

Também salta ao olhar no longa uma mise en scène que remete ao teatro. Essa lógica já fora testada por Guerra em filmes como “Ópera do Malandro” (1986) e chegara em seu apogeu em “Quase Memória” (que em termos de linguagem está relativamente próximo das últimas produções do diretor de cinema e teatro Domingos Oliveira). “Aos Pedaços”, em verdade, parece uma extensão de “Quase Memória” não apenas nesse sentido, mas também na maneira como estabelece o espaço do filme como sendo mental, interno, onírico; o universo do personagem sendo, em verdade, ele mesmo.

O longa é, em seu bojo, um processo fílmico de regressão, de rememoração, e como esperado, não é um processo tranquilo. Suas personagens estão cansadas, desgastadas, doloridas pelas ações do homem e tementes a um futuro que parece impedoso.

Para além de se alicerçar nas escolhas visuais supracitadas, Guerra aposta na força do texto para carregar o peso dramático do filme. Ao protagonista interpretado por Emílio de Mello cabe executar uma série de longos monólogos, ou ainda diálogos com um pastor, vivido por Júlio Adrião (cuja interpretação é um dos grandes destaques aqui). Pastor que, aliás, também tem seus momentos monologares, assim como as amantes do personagem principal, e materializa o milenar sentimento da culpa cristã, acrescentando mais uma camada às reflexões propostas pelo diretor.

O foco no texto com tamanho afinco reforça esse jogo de cena quasiteatral proposto pela linguagem. Existem alguns breves interlúdios entre um e outro momento de diálogos mais maciços, colocados em tela com alguns dos planos mais esteticamente estimulantes do conjunto.

Essa sucessão de acontecimentos minimalista em suas variações faz com que o longa por vezes pareça uma sequência de momentos muito semelhantes. O que diferencia uma sequência da outra, no fundo, é o personagem central da mesma (o protagonista, uma ou outra amante, o pastor) e a temática dos diálogos em questão. O fio condutor estético e textual, no entanto, faz com que o conjunto acabe parecendo demasiadamente homogêneo.

A potência construída pelas escolhas fílmicas atrai interesse em um primeiro momento, mas acaba relativamente diluída ao longo da projeção. Trata-se do tipo de projeto que provavelmente atingiria mais êxito enquanto curta ou média-metragem. A escolha pelo formato do longa-metragem soa compreensível quando se considera o prestígio do formato e a preexistência de uma obra sólida de seu realizador cunhada majoritariamente nos longas. No que se refere especificamente ao novo filme, ademais, por vezes fica a impressão de que este se beneficiaria de uma menor minutagem.

Em seus melhores momentos, “Aos Pedaços” anima quando Guerra consegue orquestrar algo interessante em suas imagens e capturar os melhores momentos do fluxo de consciência verbal de suas personagens. Tendo em vista seus últimos trabalhos, é uma adição lógica à filmografia do cineasta.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para o 48ª Festival de Cinema de Gramado. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
Topo ▲