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Ataque dos Cães

Ataque dos Cães

Western revisionista de tessitura primorosa

Wallace Andrioli - 6 de dezembro de 2021

O texto a seguir pode conter spoilers de Ataque dos Cães

 

Por mais que haja todo um histórico de representação da brutalidade masculina no western, Ataque dos Cães acaba evocando de forma mais imediata, ao menos em sua primeira parte, um exemplar recente do gênero: Sangue Negro (2007). Pela ambientação, já que, como o filme de Paul Thomas Anderson, o de Jane Campion se passa no oeste americano do início do século XX e trata de homens brutos e seus negócios capitalistas em meio à aridez do território; por alguns elementos estilísticos e pela caracterização de Phil (Benedict Cumberbatch, possivelmente na melhor atuação de sua carreira), sujeito enigmático, solitário e cruel, que se mostra sempre disposto a ferir estranhos e pessoas próximas para defender seus interesses.

Mas Campion, num movimento arriscado, reconfigura as relações entre os personagens, redefine prioridades (vale notar como Jesse Plemons, a princípio um coprotagonista, perde espaço a partir da metade do filme) e conduz a narrativa por caminhos inesperados. Para permanecer com P. T. Anderson como referência, a segunda parte de Ataque dos Cães se assemelha mais a Trama Fantasma (2017): ganham destaque o olhar delicado para o desenvolvimento sempre tenso de um relacionamento entre personalidades muito diferentes, mas que se atraem, e a abordagem do amor como duplo da morte. Reaparece até mesmo o mote do envenenamento como exercício de poder por parte de um dos personagens e clímax da narrativa.

É claro que o cinema pregresso da própria Campion pode ser invocado aqui e Ataque dos Cães guarda lá suas semelhanças com O Piano (1993). Tem-se novamente uma mulher e sua cria em meio a um ambiente árido, mas a diretora promove uma decantação bastante enriquecedora de seu filme mais conhecido e premiado. Abandona traços melodramáticos, bem fortes em O Piano, em prol de uma abordagem lacunar e contida dos afetos que surgem em lugares aparentemente hostis a eles. Num gesto de generosidade e respeito com os personagens, Ataque dos Cães não mostra frontalmente o que eles próprios buscam esconder, optando pela insinuação, pela elipse como um meio de comunicação que pode, quando bem usado, ser bastante efetivo.

Nesse movimento, o filme promove uma modernização do western verdadeiramente interessante e possibilitadora. Ao invés de apelar para um presentismo reconfortante que olhe para o passado pesando a mão no anacronismo, Campion explora as ambiguidades existentes no gênero, em seus códigos fartamente conhecidos e no período histórico representado. Daí a leitura desconstrucionista da masculinidade dos míticos cowboys não soar arbitrária, mas resultado orgânico de uma aproximação atenta, cuidadosa, realmente interessada em conhecer e discutir aspectos do funcionamento daquele universo.

Campion não deixa de fazer um western muito eficaz. Ataque dos Cães estabelece um senso de perigo iminente concreto, advindo sobretudo da situação de cerco em que os personagens Rose (Dunst) e Peter (Kodi Smit-McPhee) se encontram, já que portadores de uma delicadeza sempre prestes a ser destroçada pela rudeza do meio e da maioria de seus habitantes (principalmente Phil e sua trupe de vaqueiros). A amplitude das paisagens também funciona bem como elemento que ao mesmo tempo isola aquelas pessoas, reforçando os riscos corridos, e as atrai, anunciando um destino trágico.

Por fim, a diretora faz emergir com imensa competência os embates simples – porém delicadamente articulados a partir de fragmentos dramáticos que quase nunca permitem um vislumbre de tudo que está acontecendo – que movem sobretudo Phil e Peter. Esse é um filme sobre diferentes tipos de sentimentos que, por vezes, se chocam, forçando escolhas definitivas. É de encher os olhos a forma como Campion filma a ação decisiva de um dos personagens, decorrente desse imperativo: por meio de diversos planos detalhes evocativos de uma cena anterior da narrativa, mas evitando qualquer didatismo nessa rima. O ato de retirar um par de luvas remete ao momento em que Peter as vestiu; as imagens das tiras de couro penduradas ao sol e do manejo delas pela mão ferida e desprotegida de Phil se ligam diretamente com aquela da extração desse couro de um animal morto.

E vale então retomar a comparação com Trama Fantasma e sua memorável cena da omelete. Enquanto Paul Thomas Anderson revela ali o funcionamento de um mecanismo de cumplicidade doentia entre os dois protagonistas, Campion trabalha na lógica da ironia dramática. A cumplicidade existente nesse epílogo é da diretora (e de um dos personagens) com o espectador, deixando de fora o outro sujeito presente em cena, desinformado da totalidade dos fatos – de toda forma, os dois casos lidam com figuras inicialmente frágeis que conseguem se reposicionar nos jogos de poder em curso. A tessitura da narrativa de Ataque dos Cães a partir dessas escolhas do que oferecer e do que esconder do público é primorosa, pois instiga, gera tensão e conduz olhares com elegância, sem qualquer traço de exibicionismo. Coisa de quem tem absoluto domínio do fazer cinema e não precisa se gabar disso.

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