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Atordoado, Eu Permaneço Alerta

Atordoado, Eu Permaneço Alerta

Cinema como memória, tanto do mal quanto do bem

Michel Gutwilen - 22 de setembro de 2020

“Não tenho rancor, mas tenho memória.” A frase que encerra o curta “Atordoado, Eu Permaneço Alerta” não poderia ser mais perfeita, pois se trata de um filme no qual as imagens do passado estão sempre dando uma potência de pathos — sofrimento — ao discurso narrado. Tratam-se das memórias pessoais do militante Dermi Azevedo que se confundem com as de um Brasil ditatorial, enquanto estas se confundem com os horrores da Guerra no mundo. 

O que se pode deduzir, então, por meio desta montagem intelectual proposta pelos diretores Henrique Amud e Lucas H. Rossi, é que tudo está ligado. O núcleo familiar de Dermi é afetado pelos fantasmas da ditadura, a qual ele culpa pela morte de seu filho. Já este fenômeno local é visto dentro de um escopo maior, no contexto das onda de violência ao redor do mundo no século XX.

Conforme o discurso fica cada vez mais sombrio, o horror imagético o acompanha, trazendo uma sequência de imagens praticamente godardianas, no sentido de uma negatividade no tom geral a partir de diversas experimentações na forma fílmica. Neste sentido, há muitas escolhas formais curiosas nesta sequência final. Primeiro, a dupla de diretores faz uma analogia direta ao cinema (ou quase-cinema) do pioneiro Edward Muybridge, indo na origens da sétima arte. De mesmo modo, aviões de guerra vão disputando espaço no plano com o próprio desgaste da película que parece levar a uma espécie de autodestruição. Completando este bombardeio visual, também há: um cineasta filmando a guerra; e imagens dos soldados sobrepostas ao cogumelo da bomba nuclear. 

Dado este conjunto extremamente calculado de imagens, parece existir em comum a elas uma intenção de ligar intimamente a gênese do Cinema com a violência humana e seu papel social em registrar estes momentos. Se a nova arte do séc. XX nasce com o prazer em registrar um simples homem movimento, os rumos da humanidade lhe condenam a acompanhar os horrores dos tempos modernos. Porém, existe uma ambiguidade nesta maldição herdada pelo Cinema. Independente da violência que ele carregue, as imagens elas estão aí para que não nos esqueçamos do passado. O homem parece caminhar ciclicamente a repetir os erros do passado, a ignorar o que aconteceu e somente o discurso falado não se faz suficiente, é preciso mostrar, lembrar. Trata-se de um filme que é, ao mesmo tempo, uma grande memória coletiva — trazer à tona aquilo que se quer esconder —, mas também altamente pessoal — uma forma de manter vivos tanto Dermi quanto seu filho vivos —, sendo justamente este equilíbrio que o torna tão poderoso.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para o 48ª Festival de Cinema de Gramado. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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